Ontem, 19/12, foi aniversário de
Manoel de Barros. Em homenagem ao querido pensador-poeta, segue uma
interpretação que fiz de um dos poemas dele que mais gosto:
O filósofo Deleuze ensina que só
conseguimos mudar alguma coisa fazendo agenciamentos, pois ninguém muda nada,
inclusive a si mesmo, sozinho . No coração da palavra agenciamento se encontra
o termo “agente”. Mas o que é um agente?
Um agente pode ser qualquer coisa que
favoreça um agenciamento. Por exemplo, uma música pode ser o agente de um
agenciamento. Também podem ser o agente de um agenciamento um livro, um filme,
um quadro...
Mesmo algo considerado inútil pelo
poder dominante pode servir a agenciamentos cuja “utilidade” não se mede em
dinheiro.
Nem sempre um agente para um
agenciamento se mostra evidente. De certo modo, é preciso saber achar um agente
para nossos agenciamentos, ou até mesmo criá-lo . Sobretudo, é preciso
aprendermos nós mesmos a sermos um agente para agenciamentos que potencializem
os outros quando eles se encontram conosco. Quando nos agenciamos para mudarmos
uma situação social, por exemplo, nos tornamos agentes uns dos outros.
No poema “Aventura”, Manoel de Barros narra a potência que pode ter um
agenciamento: o agente do poema é um pote que o poeta encontra no meio do mato
jogado fora de "barriga vazia para cima".
Não faz muito tempo esse pote deve
ter sido o centro das atenções: todos ficavam felizes e o queriam perto. Ele
assim era tratado por guardar algo que despertava interesse ( talvez ele tenha
sido um pote de sorvete...).
Tamanha deve ser a dor que o pote
sente agora, abandonado . Rejeitado pelos homens após estes o sugarem, apenas a
natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e regenera,
preenche vazios - disso também já sabia Espinosa.
“Inútil”, o pote já não servia para
nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo
aquilo que, ao receber os cuidados dela , sofre um contágio, uma comunhão:
"depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as
borboletas", pressagiou o poeta.
Tempos depois, o poeta teve que
passar pelo mesmo lugar ermo. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela
imagem triste do sofrimento.
Porém, nesse intervalo de tempo , sem
que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e
cuspiu uma semente em seu ventre vazio.
Ali já havia areia e cisco que a
natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de
parir". E onde antes crescia o vazio, um poema vivo o pote partejou: do
ventre do pote um pé de rosas desabrochou...
"Se a gente não der o amor ele
apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa lição que recebeu
sob a forma de rosas. Em seu agenciamento com o pote, o poeta metamorfoseou as
rosas que recebeu em poesia que generosamente nos oferta.
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