domingo, 4 de dezembro de 2022

a calça

 

Liberdade não é o mesmo que libertário. Um fascista acha que liberdade é poder ameaçar a democracia, um militarista delira  que liberdade é poder fazer culto de armas, um liberal imagina que liberdade é poder comercializar e privatizar a vida.

Já libertário é tudo aquilo que enseja ações antifascistas,  antimilitaristas, antimercadoras da vida.

Um livro,  um poema, uma filosofia...podem ser libertários, desde que despertem  ações libertárias na prática, aqui e agora.

A primeira vez que li a palavra libertário foi num livro de Maiakóvski , cuja poesia era definida como libertária. Foi após ler Maiakóvski, quando eu fazia o antigo segundo grau, que vivi  este acontecimento :

Certa vez, para não dar trabalho à minha mãe e exercer um pouco de autonomia , fui lavar uma calça jeans minha . Naquela época, as calças jeans eram de cor azul escura, padrão. Não tínhamos máquina de lavar: lavei a calça com as mãos, no tanque. Depois a coloquei para secar no varal.

Horas depois, vi a calça caída com uma das pernas imersa numa bacia que eu imaginava conter  água e sabão (provavelmente  um vento a derrubou ali).

No dia seguinte vi que não havia apenas água e sabão na bacia, pois a perna que nela  caíra estava completamente desbotada! Nunca eu tinha visto um efeito assim. Algo em mim amou  aquela diferença : mergulhei a calça inteira na bacia com água sanitária...

Na manhã seguinte, vi a obra pronta: estendida no varal, a calça parecia uma pintura  de Pollock! Quando a coloquei , senti que  vestia mais do que meu corpo: também vestia a minha alma , que assim não estava mais nua.

Aquela calça se tornou mais do que uma calça: ela se metamorfoseou em borboleta liberta de um casulo.

Antes de eu sair para o colégio, quem  primeiro me viu com a calça foi minha mãe, que apenas disse : “cuidado, meu filho...”.

Só entendi a preocupação dela quando cheguei na rua (ainda havia ditadura militar ): todos me fuzilavam  com olhares armados com ódio, só por causa daquela calça. Vestir-se com a diferença incomoda  rebanhos homogêneos, “mesmais”, diria Manoel de Barros.

Sentindo-me sozinho, até pensei em voltar para casa, me despir da arte que ousei   ,  vestir uma “calça-alma” acomodada  e me esconder de mim. Mas tomei coragem e segui em frente, e creio que  foi ali que o filósofo nasceu em mim.

Quando cheguei ao colégio,   minha  calça-alma  diferente não foi bem recebida também , parecia que ela  punha a nu   os que vestiam uniformes, por fora e por dentro.

Até que veio até mim, sorrindo, um amigo do peito: o Jimi  ( o nome dele era Jorge, “Jimi” era um apelido  por ele amar  Jimi Hendrix) . Ele olhou a calça com aprovação , como se ouvisse uma nova música de Hendrix,   e me perguntou : “Como você fez? Quero  uma calça desse jeito  também!”

E assim eu já não estava mais sozinho...

 

(imagem :  “Blue” /  de Pollock)




-Poema de Maiakóvski:



- João Bosco & Maiakóvski:



- Jimi na voz da Céu:




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