quinta-feira, 23 de julho de 2020

linhas de fuga


“Ariadne” significa “aranha”. Como a aranha, Ariadne é produtora de um fio: o “fio de Ariadne”. Enquanto as Moiras tecem urdiduras  com o férreo fio do Destino, e são elas que também cortam o fio da vida para assim trazer a morte, o fio de Ariadne é meio para    quem  quer inventar novos caminhos, novas tramas. O fio de Ariadne tem a cor vermelha. Ele se desprende de um novelo tal como o sangue se desprende do coração que o bombeia. O fio de Ariadne não nasce de um ponto e termina em outro, como as linhas traçadas com régua. O fio de Ariadne nasce de um novelo do qual é puxado. “Novelo” significa: “novo elo”. O  novelo é um ventre potencial para novos elos. Quem tem dentro de si um tal novelo nunca fala e age só com o ego,   mas sempre a partir de uma ancestralidade cheia de vozes unida a um berçário de falas novas que ainda nem sabem balbuciar idiomas. Não que nesse novelo tudo já esteja dito: ao contrário, é esse novelo que nos faz ter o que narrar e dizer. Esse novelo é fonte para um “afloramento de falas”, diria Manoel de Barros. Riqueza não é ter dinheiro ou propriedades, riqueza é achar dentro de nós esse novelo  para com ele  criarmos  novos elos; e assim vencermos, quem sabe, esse funesto destino nos quais as Moiras de hoje querem nos ver atados e presos.
Ariadne tinha um par: Dioniso. Ao contrário do Minotauro ,  a “besta” do labirinto que aprisiona , o labirinto de Dioniso era produzido  de seu deambular sempre criador de direções novas. É por isso que de seus caminhos não há mapa ou estradas prévias, como todo caminho libertário .  Somente o fio de Ariadne traça e acompanha a liberdade de caminhos de Dioniso-Nômade-Andarilho.
Certa vez, Teseu quis entrar no labirinto para matar o Minotauro. Teseu representa a racionalidade masculina que teme a vida e quer dominar os instintos à força, já Minotauro simboliza as pulsões que ameaçam a nós mesmos quando ficam presas e reprimidas. A “sede de sangue”  do Minotauro não vem do herbívoro touro, essa sede de  violência vem da parte humana acéfala, essa sim a “besta”. A  luta de Teseu contra o Minotauro simboliza o confronto entre uma cabeça teórica sem corpo contra um corpo sem cabeça. Nessa luta,  quem  sempre  perde é a vida que está no homem, seja pela neurose , quando a cabeça vence, seja pela barbárie , quando quem vence é o acéfalo.
Ariadne simboliza o fio da Vida ; Dioniso, o avançar da arte. A composição de ambos cria linhas de fuga que transmutam as energias pulsionais em impulso para a vida avançar sempre mais.

“O andarilho abastece de pernas as distâncias.” (Manoel de Barros)



Obs.: A palavra latina "occursus" que aparece  na capa do livro aqui acima tem sua origem na "Ética" de Espinosa . “Occursus”  foi traduzida como "encontro". Espinosa dizia que existem os bons e os maus encontros. Os bons encontros nos potencializam, enquanto os maus nos entristecem e despotencializam. Mas a palavra "occursus" também significa "circuito". E esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas juntos; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que ameaça a nós mesmos.









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