sexta-feira, 31 de julho de 2020

das serpentes e suas alianças...

Espinosa dizia que há uma espécie de “trindade obscurantista” que reduz os homens e as sociedades ao pior deles mesmos, pondo em risco a pluralidade social , a educação e a democracia. Essa trindade é composta pelos  seguintes personagens ou tipos: o escravo, o tirano e o sacerdote. O escravo é aquele que se deixa dominar pelas “paixões tristes”. O escravo  não apenas as sofre, o que é natural de acontecer tendo em vista a condição humana, porém ele se alimenta delas, como se isso preenchesse algum buraco em sua vida. O ódio, a ignorância, o medo, etc., são exemplos de paixões tristes. Se uma serpente nos morde, é inevitável que em nós entre o veneno, cabendo-nos imediatamente buscar o antídoto. Mas a paixão triste pode fazer  do homem um dependente do veneno que o enfraquece , ao mesmo tempo maldizendo quem traz antídotos. O tirano é quem se vale das paixões tristes para dominar os ressentidos e ignorantes. O  tirano canaliza as paixões tristes e as emprega a seu favor, inclusive politicamente. O tirano chega ao poder  não por amor à coisa pública, mas tirando proveito  das paixões tristes e as fazendo de arma contra os que ele estigmatiza como  inimigos. O sacerdote é aquele que passa a mão sobre a cabeça do escravo, bendizendo a ignorância .  Em geral, os sacerdotes são pequenos, e só ficam maiores do que os escravos os mantendo ajoelhados. O sacerdote prega que a tristeza é melhor do que a alegria, que o obedecer é melhor do que o  rebelar-se, que filosofia, ciência e arte são perigosas. O tirano escraviza o corpo do escravo, o sacerdote escraviza a alma. “Sacerdote”, aqui, não é exatamente uma autoridade religiosa literal, mas um tipo  que se aplica  a várias espécies  de homens. Espinosa chama de poder teológico-político a essa aliança abominável  entre tiranos e sacerdotes, cuja força cresce quanto mais o escravo ignora sua escravidão. Para quem imagina que  Espinosa já nasceu sábio ou que está se colocando em uma situação superior ao restante dos homens , ele relata que  já viu de perto essa escravidão nele mesmo  , escravidão  no sentido aqui colocado. E ele se tornou o que se tornou porque libertou, primeiro, a si mesmo, ao mesmo tempo  compreendendo  que não há sentido em libertar a si mesmo sem libertar igualmente aos outros, nisso concentrando seus esforços, não sem alegria e amor . Esse concentrar de esforços libertários tem um nome: filosofia prática.




Alguns alunos sempre me dizem ( e com razão):  “Professor, é difícil ler a Ética de Espinosa!”. Quase sempre , o motivo da dificuldade é a “roupa” com a qual Espinosa “veste” seu pensamento: a geometria. Além das boas Introduções ao pensamento de Espinosa, como este livro de Deleuze, recomendo o seguinte roteiro para quem nunca leu Espinosa e não tem formação em filosofia. A Ética possui cinco partes. Na Primeira Parte , começar lendo pelo Apêndice ( que se encontra no final dessa Primeira Parte). Após ler o Apêndice, ler a Proposição 8 e, sobretudo, os dois Escólios dessa mesma Proposição 8 ( a palavra “escólio” significa “escola” ou “comentário”, ou seja, é no escólio que Espinosa comenta e melhor explica suas ideias, sem vesti-las com a roupagem geométrica que, muitas vezes, dificulta a leitura). Depois, ir para a  Segunda Parte. Nela, ler a Proposição 49 e, principalmente, o Escólio. Seguir para a  Terceira Parte, ler o Prefácio  . Depois, ler a Proposição 2 e seu Escólio; em seguida, a Proposição 56 e seu Escólio; por fim, ler a “Definição de Afetos” e a “Definição Geral dos Afetos” que fecham essa Terceira Parte. Na Quarta Parte, ler o Prefácio e depois o Apêndice que fecha essa Quarta Parte. Na Quinta Parte, ler o Prefácio  e a Proposição 42 ( e seu Escólio). Na obra de Espinosa intitulada “ Tratado Político”, o filósofo recapitula , nos Capítulos 1 e 2 ( que não são extensos)  , as principais teses de sua “Ética” , e numa linguagem mais acessível ( sem os aparatos da geometria). Sempre recomendo também o livro “Tratado sobre a emenda do intelecto”, obra que antecede a Ética e rascunha algumas ideias que serão desenvolvidas posteriormente. É nessa obra que Espinosa mostra como encontrou o “remédio” ou o “antídoto”, fato que mencionei por alto aqui na postagem.


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