sábado, 25 de julho de 2020

espinosa, o geógrafo


O escritor Maurice Blanchot faz uma comparação para questionar os que defendem a “neutralidade” como atitude “justa” para se posicionar diante dos perigos que ameaçam a sociedade e a vida. Tal “neutralidade apolítica” se parece com a atitude de quem quer conhecer um quarto   colocando-se fora dele, atrás da porta, olhando para dentro pelo buraco da fechadura. O “neutro” imagina descrever assim apenas os fatos e tão somente os fatos que vê: sem “paixões” e envolvimentos , apenas a “razão pura”. Esta é a contradição existencial de tal visão: querer colocar-se fora da vida para melhor ver a vida. Blanchot  chama esse olhar de “o olhar da morte” , pois é de uma espécie de morte  que se trata : a morte de perspectiva. Um olhar assim é até  capaz de descrever e analisar, porém é incapaz de achar uma saída. Pois toda saída começa a ser construída , primeiro, do lugar onde se está. A vida nunca é neutra : ela sempre toma partido a favor daqueles que a querem mais viva e por ela se arriscam, mesmo correndo o risco de perdê-la. O oposto desse olhar que vê a  vida apenas pela fechadura, ou por uma tela de tevê ou celular , o oposto disso é fazer-se vivamente presente, mas sem perder de vista a janela . Se não houver janela, quebrar a parede para inventar uma , fazendo-se abertura por onde entrem luz e novo ar, para não sufocar .
A imagem que ilustra a postagem é “O geógrafo”, de Vermeer. Dizem que é o próprio Espinosa esse geógrafo de compasso aberto na mão e  a olhar para fora dos limites do quarto, parecendo buscar horizontes. Envolve Espinosa uma veste azul com uma barra em vermelho cobrindo-lhe o peito. O azul é a cor do céu, é a cor que “celesta”, dizia Manoel de Barros; já o vermelho é cor da vida intensa. A composição dessas duas cores faz nascer o violeta, considerada a cor que veste por dentro os sábios, pois  “violeta é  a cor do  pensar libertário”, ensinava Cláudio Ulpiano.  Vermeer retratou Espinosa como um “geógrafo do pensamento”. “Geo” significa “terra”. Não a terra que  donos  cercam  para    manterem seus  gados , mas a terra que se abre em todas as direções como espaço horizontado.  
Além da luz do mundo que entra transversalmente pela janela, também chama a atenção no quadro a luminosidade que emana do mapa aberto onde o cartógrafo desenhou suas ideias, como se no papel o pensador também abrisse uma janela : para fazer  do conhecimento uma potente  luz contra   as trevas.


 “Poesia é horizontamento.” (Manoel de Barros)

“Nas mãos a ferramenta de operário,
e na cabeça a coruscante ideia.” (versos do poema “Spinoza”, de Machado de Assis)

“Em Espinosa, tudo é luz.” (Deleuze)











( a música "Libertango", de Piazzolla, tem um verso que diz: “Minha liberdade é tango que dança em dez mil portas.")

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