quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

o presente do papai noel...

"Como quem espreita o céu 
  e colhe na visão um novo planeta,
  assim fiquei então."

Keats


Eu tinha cerca de 6 anos. Na noite do dia 24 de dezembro , próximo à meia-noite, meus pais me levaram ao meu quarto para me mostrarem o que o papai noel deixou para mim sobre minha cama: uma bola. Mas eu mal dava atenção ao presente, eu queria era ver o papai noel! Meus pais então me diziam: “ele já saiu pela janela!” Depois eles me levavam correndo ao quintal e apontavam para o alto: “Olha o papai noel lá, subindo ao céu em seu trenó, está vendo?” Mas eu só via as estrelas... Com a alma acesa, eu não parava de fazer perguntas aos meus pais: “O papai noel mora numa estrela? Por que ele se esconde? Ele tem medo da gente? Ele sempre foi velho ou um dia foi criança?” Meus pais acabavam indo embora para cuidarem da ceia, sem entenderem tanta curiosidade poético-metafísica... Inquieto, eu ficava ali olhando a imensa noite estrelada do verão carioca, cheio de perguntas ainda. Após um bom tempo olhando o infinito , acabava me lembrando da bola, e voltava correndo para brincar com ela até tarde. Ia dormir abraçado com a bola...
No ano seguinte mudamos para uma nova residência. Na noite do nosso primeiro natal no apartamento novo, fiquei de soslaio olhando a janela. Meus irmãos menores, impacientes , queriam ir logo para o quarto ver os presentes trazidos pelo papai noel. “Ainda não é meia-noite,ele ainda não veio”,dizia meu pai.Houve um momento em que vi meu pai e minha mãe trocarem olhares. Eles não repararam que eu notei aquela comunicação estranha, parecia que estavam combinando algo.Meu pai saiu de fininho, enquanto minha mãe entretinha a gente na sala com o panetone. Mas eu só fingia olhar para o panetone, pois minha atenção estava voltada para surpreender o papai noel em sua entrada sorrateira pela janela. Se meus queridos pais não tinham respostas para minhas indagações metafísicas, seria então ao próprio papai noel que eu interpelaria com minhas perguntas. Eu nem fazia questão da bola nova, já ficaria contente em ter de presente as respostas. Então, de rabo de olho , vi meu pai entrando no nosso quarto na ponta dos pés, sem notar que eu o via. Ele nem acendeu a luz para entrar, achei estranho... Porém em suas mãos estava o motivo daquele seu esgueirar-se feito sombra:meu pai carregava pacotes de presentes...
Foi instantânea a minha compreensão do que estava acontecendo. Não fiquei decepcionado com a situação, tampouco desiludido . Algo em mim despertou, abriu os olhos e nunca mais os fechou. Mais do que a tudo, foi a existência da linguagem que surgiu ali para mim, pois até aquele momento nunca tinha reparado na existência dela. Só existe a mentira porque existe a linguagem, embora a linguagem não seja uma mentira, mas uma invenção. A mentira é uma invenção que quer passar-se por uma verdade não inventada. Eu ainda não sabia ler direito as palavras escritas nos livros, porém começava a ler o mundo . Quando meu pai retornou à sala dizendo que viu o papai noel saindo pela janela, fiquei pensativo e não disse nada. Senti ali uma solidão diferente : um estar só sem ficar triste. Enquanto meus irmãos corriam para o quarto, fui à janela e olhei para o imenso céu de maneira nova: com uma intensa e viva alegria que só compreendi muitos anos depois ao ler Espinosa. E ao tentar apreender com o pensamento aquele infinito estrelado, entendi que era o Sentir, e não o racionalizar , o que me punha mais próximo daquela realidade insondável. Senti então que algo me crescia por dentro, livre. Acho que foi ali que começou a ser partejado em mim o filósofo.

“O homem seria metafisicamente grande, se a criança fosse seu mestre”(Kierkegaard).



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