"Como quem espreita o céu
e colhe na visão um novo planeta,
assim fiquei então."
Keats
Eu tinha cerca de 6 anos. Na noite do dia 24 de dezembro , próximo à meia-noite, meus pais me levaram ao meu quarto para me mostrarem o que o papai noel deixou para mim sobre minha cama: uma bola. Mas eu mal dava atenção ao presente, eu queria era ver o papai noel! Meus pais então me diziam: “ele já saiu pela janela!” Depois eles me levavam correndo ao quintal e apontavam para o alto: “Olha o papai noel lá, subindo ao céu em seu trenó, está vendo?” Mas eu só via as estrelas... Com a alma acesa, eu não parava de fazer perguntas aos meus pais: “O papai noel mora numa estrela? Por que ele se esconde? Ele tem medo da gente? Ele sempre foi velho ou um dia foi criança?” Meus pais acabavam indo embora para cuidarem da ceia, sem entenderem tanta curiosidade poético-metafísica... Inquieto, eu ficava ali olhando a imensa noite estrelada do verão carioca, cheio de perguntas ainda. Após um bom tempo olhando o infinito , acabava me lembrando da bola, e voltava correndo para brincar com ela até tarde. Ia dormir abraçado com a bola...
No ano seguinte mudamos para uma nova
residência. Na noite do nosso primeiro natal no apartamento novo, fiquei de
soslaio olhando a janela. Meus irmãos menores, impacientes , queriam ir logo
para o quarto ver os presentes trazidos pelo papai noel. “Ainda não é
meia-noite,ele ainda não veio”,dizia meu pai.Houve um momento em que vi meu
pai e minha mãe trocarem olhares. Eles não repararam que eu notei aquela
comunicação estranha, parecia que estavam combinando algo.Meu pai saiu de
fininho, enquanto minha mãe entretinha a gente na sala com o panetone. Mas eu
só fingia olhar para o panetone, pois minha atenção estava voltada para
surpreender o papai noel em sua entrada sorrateira pela janela. Se meus
queridos pais não tinham respostas para minhas indagações metafísicas, seria
então ao próprio papai noel que eu interpelaria com minhas perguntas. Eu nem
fazia questão da bola nova, já ficaria contente em ter de presente as
respostas. Então, de rabo de olho , vi meu pai entrando no nosso quarto na ponta
dos pés, sem notar que eu o via. Ele nem acendeu a luz para entrar, achei
estranho... Porém em suas mãos estava o motivo daquele seu esgueirar-se feito
sombra:meu pai carregava pacotes de presentes...
Foi instantânea a minha compreensão
do que estava acontecendo. Não fiquei decepcionado com a situação, tampouco
desiludido . Algo em mim despertou, abriu os olhos e nunca mais os fechou. Mais
do que a tudo, foi a existência da linguagem que surgiu ali para mim, pois até
aquele momento nunca tinha reparado na existência dela. Só existe a mentira
porque existe a linguagem, embora a linguagem não seja uma mentira, mas uma
invenção. A mentira é uma invenção que quer passar-se por uma verdade não
inventada. Eu ainda não sabia ler direito as palavras escritas nos livros,
porém começava a ler o mundo . Quando meu pai retornou à sala dizendo que viu o
papai noel saindo pela janela, fiquei pensativo e não disse nada. Senti ali uma
solidão diferente : um estar só sem ficar triste. Enquanto meus irmãos corriam
para o quarto, fui à janela e olhei para o imenso céu de maneira nova: com uma
intensa e viva alegria que só compreendi muitos anos depois ao ler Espinosa. E
ao tentar apreender com o pensamento aquele infinito estrelado, entendi que era
o Sentir, e não o racionalizar , o que me punha mais próximo daquela realidade
insondável. Senti então que algo me crescia por dentro, livre. Acho que foi ali
que começou a ser partejado em mim o filósofo.
“O homem seria metafisicamente
grande, se a criança fosse seu mestre”(Kierkegaard).
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