No
poema “O guardador de águas”, Manoel de Barros descreve o seguinte
acontecimento: sob um monturo de restos de ossos, de folhas apodrecidas, de
cacos de vidro e farrapos do que outrora respirou e foi vivo, sob tal monturo,
que a natureza recolheu sem preconceito ou condenação, no ventre desse casulo
úmido, uma semente despertou e uma fuga foi-se desenhando, e o que era
obstáculo tornou-se impulso para a vida que se expandia. Move esta vida o
desejo de ver o sol, o sol que ela nunca viu. Esse desejo perfurou o monturo, e
deu-se a jubilação: saiu a pequena planta cantando o amor de existir. O poeta:
“indivíduo que enxerga semente germinar”, pois “nas fendas do insignificante
ele procura grãos de sol” (BARROS, 1992, p. 211).
O guardador de águas:
guardador de fluxos. Os fluxos somente podem ser guardados em um espaço aberto,
sem limites determinados, cujas margens são limiares que, por dentro, se podem
expandir. Guardar os fluxos é cuidar também deles, a começar pelos fluxos que
nos constituem: caute, como recomendava Espinosa; cuidado como ato ético e
também clínico. Em Manoel de Barros (2010a, p. 145), a essência não é uma
“forma fixa”, ela é um “minadouro”, dela brotam e minam inauguramentos. Só podemos guardar os fluxos em um espaço
múltiplo, ao mesmo tempo subjetivo (lírico) e objetivo (prosaico). Guardar as
águas é guardar-se nelas, como larva, rascunho, desabrimentos — “estou à janela
e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo
comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir” (LISPECTOR, 1984, p. 119).
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