sábado, 8 de fevereiro de 2025

devir-indígena

 

Certa vez , por volta de 1950, um antropólogo inglês visitou a tribo de um povo indígena. Ao entrar na habitação do pajé  da tribo , o antropólogo viu a seguinte cena:  havia uma máquina de escrever pendurada na parede como se fosse  um objeto artístico, um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros.

O antropólogo nada perguntou ou disse. De volta a Londres, ele consultou livros e tratados para ver se achava explicação teórica para a  ação subversiva-artística  do indígena .

 De repente, o antropólogo  olha para a parede de sua biblioteca e vê um arco e flecha pendurados como enfeite...Então, o europeu  compreendeu que o ato subversivo-artístico que o indígena  fez explicava de forma criativa e crítica, mais do que toda teoria, o ato colonialista  que o próprio antropólogo fizera com o arco e flecha raptados da cultura originária.

Àquela época, a máquina de escrever era o objeto-símbolo do meio intelectual-acadêmico. Porém, o ato do indígena fez o antropólogo pensar em coisas que ele nunca pensou e  escreveu com sua própria máquina de escrever.

Graças ao ato artístico-decolonial  do indígena-pensador, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos eurocentrados.

 Todo objeto é fruto de uma prática social-simbólica. Por trás de todo objeto, mesmo de um celular de último tipo, existe uma prática social que o mercado escamoteia ao transformar o celular  em mero objeto de culto consumista, que “humaniza” o objeto ao mesmo tempo que “coisifica” o ser humano.

Não apenas os objetos são resultados de uma prática social-simbólica: os conceitos e ideias  com os quais pensamos o mundo e  a nós  mesmos também o são.

O indígena era o “outro” do branco, mas o branco também era o “outro” do indígena. Nem todos são brancos, nem todos são indígenas, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal.

 É essa universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( “mesmal” é como  o poeta Manoel de Barros define a “antipoesia”).

Para conseguirmos enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a b4rbárie é tecnológica,  só mesmo redescobrindo em nós  um  olhar ancestral que nos conecte, com a mente e com o corpo,  à natureza (a mesma que ensina o pajé Espinosa). Para que nossas  palavras sejam como  arcos e flechas em ação de resistência e defesa da nossa tribo planetária, e não  mero enfeite teórico em livros.

Pois nada é mais contrário ao olhar vestido com uniformes de um  f4scist4 do que o olhar nu e livre do indígena.


 "Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios.

Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.”

(Manoel de Barros)


“Aprendi com os poetas da tribo.”

(Krenak)





Esta canção Kayapó ensina aos jovens da tribo que os rios e as florestas também são nossos Ancestrais. E que não há futuro digno sem a defesa e preservação desses Ancestrais:




2 comentários:

Juliana Mado disse...

Olá Elton, esse texto "devir indígena" é de sua autoria? Essa parte em que você diz do outro como valor universal, você tem referências sobre isso?

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Bom dia, Juliana. Todos os textos que estão aqui nesta página são de minha autoria. Essa ideia do "outro" como valor universal tem inspiração na noção de "devir-outro", de Deleuze e Guattari ( assim como a ideia de "devir-menor" ou "devir-minoritário") . Uma boa referência também nesse tema é o livro de José Gil: "Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações". Esse texto da postagem é uma versão de um capítulo de livro que escrevi. Recentemente , tenho trabalhado esse tema a partir da poética de Manoel de Barros. Há um verso dele que me inspirou em livro que escrevi sobre ele: "Perdoai. Mas preciso ser Outros." Abraços e obrigado pelo comentário.