Gosto de comentar Manoel “me manoelizando”
, entrando num “devir-manoel”. Esse “manoelizar-me” me ajuda a ter o que falar acerca de temas que a filosofia e as ciências também tratam,
porém injetando poesia em seus conceitos, como sangue novo em coração fatigado.
Hoje, senti a necessidade de
retornar a esse poema , para nele achar abrigo debaixo das asas protetoras da
arraia-manoelina :
Na rica
fala do povo do Pantanal, “agroval” significa: “lugar onde se cultiva a
vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para um de
seus mais belos poemas.
O poema narra o
que faz uma imensa arraia quando as águas do Pantanal secam e põem a
vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas e pousa no barro,
retendo parte da água abaixo de si.
Com arte e
cuidado, a arraia recria um pequeno Pantanal entre seu abdômen e o
chão úmido , para que nesse espaço protegido o coração do Pantanal
possa habitar e perseverar , vivo.
Generosa, a
arraia deixa tudo o que corre perigo vir morar sob suas
asas, fazendo delas abrigo.
Migram para
debaixo das asas da arraia não apenas bichos, instalam-se também
sementes de futuras flores e frutos, de tal modo que nesse Pantanal
em rascunho tudo o que vive devém embrião da arraia-útero.
Sob a
proteção de tal Gaia-Pachamama, a vida continua, resiste, fortalece-se;
acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e
múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma Kizomba a
celebrar a vida salva pela Vida.
Pois quando as
águas do Pantanal vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o
oxigênio. Os predadores sorrateiros e
oportunistas lucram com a
desolação e ficam à espreita para predar a vida que
sufoca .
Mas a arraia é
resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar
para partilhá-lo como “Pneuma” . Na Grécia poética-filosófica,
“Pneuma” é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê”.
Pneuma é o sopro
que dá vida ao corpo e forma com ele um único e singular ser. Em
latim, “Pneuma” é traduzido por “Spiritus” : “sopro que dá vida”.
Apesar dos
perigos em torno, nunca a arraia se entrega ou desabraça aos
que buscam sua proteção e cuidado.
Quando as águas
novamente caem do céu e a vida pode recomeçar, a arraia
levanta as asas e parteja os seres que salvou do perigo,
como uma utopia que enfim sai das teorias e livros para
ser criada na prática.
Não seria tal
ação da arraia o modo como a própria natureza nos ensina o que é a
virtude ético-política que Espinosa chamava de “fortaleza”?
Não por acaso,
na língua banto “fortaleza”( “fortitudo”) é “quilombo”: comunidade ancestral de resistência pela vida e luta contra toda forma de tir4nia.
( Imagem: Manoel
e seu Pantanal )
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