sábado, 15 de fevereiro de 2025

Agroval: a arraia-manoelina

 

Gosto de comentar Manoel “me manoelizando” , entrando num “devir-manoel”. Esse “manoelizar-me” me ajuda a ter o que falar  acerca de temas  que a filosofia e as ciências também tratam, porém injetando poesia em seus conceitos, como sangue novo em coração fatigado.

Hoje, senti a necessidade de retornar a esse poema , para nele achar abrigo debaixo das asas protetoras da arraia-manoelina :

Na rica  fala do povo do Pantanal, “agroval” significa:  “lugar onde se cultiva a vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para  um de seus mais belos  poemas.

O poema narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do Pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si.

Com arte e cuidado, a arraia recria um  pequeno Pantanal entre seu abdômen e o chão úmido , para que nesse espaço  protegido o coração do Pantanal possa habitar e perseverar  , vivo.

Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo.

Migram  para debaixo das asas da arraia não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que nesse Pantanal em rascunho  tudo o que vive devém embrião da arraia-útero.

 Sob a proteção de tal Gaia-Pachamama, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida.

Pois quando as águas do Pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros e oportunistas  lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca .

Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo como “Pneuma” . Na Grécia poética-filosófica, “Pneuma” é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê”.

Pneuma é o sopro que dá  vida ao corpo e forma com ele um único e singular ser. Em latim,  “Pneuma” é traduzido por “Spiritus” : “sopro que dá vida”.

Apesar dos perigos em torno, nunca a arraia  se entrega ou desabraça aos que  buscam sua proteção e cuidado.

Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo, como uma utopia que enfim sai das teorias e  livros  para ser criada na prática.

Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”?

Não por acaso, na língua banto “fortaleza”( “fortitudo”)  é “quilombo”:  comunidade ancestral  de resistência  pela vida e   luta  contra toda forma de   tir4nia.


                                       ( Imagem: Manoel e seu Pantanal )

 





 

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