sábado, 3 de agosto de 2024

o passarinho-utopia

 

Ouvi essa história  numa belíssima aula de filosofia do saudoso professor Cláudio Ulpiano, quando eu era seu aluno . Cláudio nos explicava que  o tordo é um passarinho canoro possuidor de três tipos de canto.

 O primeiro ele canta quando quer marcar um território. Nesse caso, sempre acontece uma disputa, com dois ou mais tordos  rivalizando pelo  mesmo território. Sem precisarem brigar , o tordo de canto mais potente vence e toma conta   do território, sem que os outros tordos fiquem  ressentidos ou queiram se vingar.

O segundo canto o tordo canta quando deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso e sutil,  entremeado por silêncios eloquentes acompanhados de posturas sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea que escolhe qual tordo será seu companheiro amoroso.

O terceiro canto o tordo canta em dois momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é canto de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida.   É um canto de gratidão ao sol: quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não importando  o que nele aconteceu;  e quando um novo sol chega, por trazer com ele um novo dia.

 Enquanto os galos cantam apenas  o dia que vem,  o  tordo também canta grato à vida  que recebeu do dia que  vai, como os estoicos nos ensinando o  “Amor Fati” .

O canto de território e o canto amoroso  são explicáveis pelo instinto  ,porém o misterioso terceiro canto parece ser movido por um afeto que vai além dos limites orgânicos do instinto, como se o tordo  desejasse  um território e amor infinitos, e seu canto fosse um poema que nos conduzisse  à utopia, transportando-nos como só a arte nos transporta e salva.

 Nesse terceiro canto, o tordo sobe  ao galho mais alto da mais elevada árvore de seu território ,  para assim horizontar sua visão  e de lá cantar às cores e luz  do sol ,  fonte da Vida.

Esse terceiro canto, porém,  coloca o tordo sob perigo. Pois nesses períodos fronteiriços entre o dia e a noite a soturna coruja fica alerta , à espreita para ver onde está o tordo e  fazê-lo de   presa .

A mesma arte  que  singulariza o tordo, também o põe à  mostra. Porém, mesmo correndo riscos,  o tordo não se esconde ou  cala : ele persevera no seu cantar à vida , com o máximo de potência que pode.

 

“Inventar uma tarde a partir de um tordo”.( Manoel de Barros )

 

“Não há nunca outro critério senão o teor da existência,

a intensificação da vida”. ( Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)


"As coisas  da arte são sempre resultado de ter estado a     perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até  um    ponto que ninguém consegue ultrapassar".  (   Rilke )

 

( Imagem: “Passagem” ou “Transportado pelo passarinho-utopia” / escultura de Fredrik Raddum)

 


 


Neste breve vídeo, o grande maestro e compositor Messiaen vai à floresta para ouvir e anotar o canto de um tordo, com o passarinho  aprendendo . No vídeo, ele se refere ao canto do tordo como um canto "imperioso de grande autoridade", autoridade no sentido de algo que se impõe não pela força física, mas pela presença de sua potência criativa e afetadora.




 

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