Ouvi essa história numa
belíssima aula de filosofia do saudoso professor Cláudio Ulpiano, quando eu era
seu aluno . Cláudio nos explicava que o tordo
é um passarinho canoro possuidor de três tipos de canto.
O primeiro ele canta quando quer marcar um
território. Nesse caso, sempre acontece uma disputa, com dois ou mais tordos
rivalizando pelo mesmo território. Sem precisarem brigar , o tordo
de canto mais potente vence e toma conta do território, sem que os
outros tordos fiquem ressentidos ou queiram se vingar.
O segundo canto o tordo canta
quando deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso e
sutil, entremeado por silêncios eloquentes acompanhados de posturas
sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea que escolhe qual tordo será seu companheiro
amoroso.
O terceiro canto o tordo canta em
dois momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é
canto de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida. É um
canto de gratidão ao sol: quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não
importando o que nele aconteceu; e quando um novo sol chega, por
trazer com ele um novo dia.
Enquanto os galos cantam apenas o dia
que vem, o tordo também canta grato à vida que recebeu do dia
que vai, como os estoicos nos ensinando o “Amor Fati” .
O canto de território e o canto
amoroso são explicáveis pelo instinto ,porém o misterioso
terceiro canto parece ser movido por um afeto que vai além dos limites orgânicos
do instinto, como se o tordo desejasse um território e amor infinitos, e seu canto fosse
um poema que nos conduzisse à utopia, transportando-nos
como só a arte nos transporta e salva.
Nesse terceiro canto, o tordo sobe ao galho mais alto da mais elevada árvore de
seu território , para assim horizontar
sua visão e de lá cantar às cores e luz do sol , fonte da Vida.
Esse terceiro canto,
porém, coloca o tordo sob perigo. Pois nesses períodos fronteiriços
entre o dia e a noite a soturna coruja fica alerta , à espreita para ver onde
está o tordo e fazê-lo
de presa .
A mesma
arte que singulariza o tordo, também o põe
à mostra. Porém, mesmo correndo riscos, o tordo não se esconde ou cala :
ele persevera no seu cantar à vida , com o máximo de potência que pode.
“Inventar uma tarde a partir de
um tordo”.( Manoel de Barros )
“Não há nunca outro critério
senão o teor da existência,
a intensificação da vida”. (
Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)
"As coisas da arte são
sempre resultado de ter estado a perigo, de ter ido até
o fim em uma experiência, até um ponto que ninguém
consegue ultrapassar". ( Rilke )
( Imagem: “Passagem” ou “Transportado
pelo passarinho-utopia” / escultura de Fredrik Raddum)
Neste breve vídeo, o grande
maestro e compositor Messiaen vai à floresta para ouvir e anotar o canto de um
tordo, com o passarinho aprendendo . No
vídeo, ele se refere ao canto do tordo como um canto "imperioso de grande
autoridade", autoridade no sentido de algo que se impõe não pela força
física, mas pela presença de sua potência criativa e afetadora.
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