Uma das ideias principais da filosofia é a de Fundamento. Cada período da
filosofia afirma e se apoia em um Fundamento. Tanto na filosofia grega clássica
como na filosofia medieval o fundamento tinha por referência a noção de Objeto[1].
Exatamente por isso, o método filosófico em ambos os períodos era a Contemplação.
“Con-templar”: entrar no “templo” enquanto morada do divino. Em Platão, o divino são as Ideias: são as
Ideias o Objeto da razão. É das Ideias que irradia a luz que ilumina os “olhos
da razão”, possibilitando assim o conhecimento da Verdade. Esse Objeto do
Pensamento é transcendente em relação ao mundo sensível que nosso corpo tem
acesso.
Podemos apresentar a seguinte fórmula para representar o processo de
conhecimento na filosofia grega : O → s. A ênfase repousa no Objeto , e por
isso está escrito com “O” maiúsculo : é
dele que parte a seta do conhecimento e atinge o sujeito[2],
que é escrito com “s” minúsculo em razão de ele não ser o polo principal do
processo.
No mundo dos Objetos Transcendentes ( o Mundo das Ideias) de Platão, existe
o Homem, a Árvore , o Animal , etc., como Objetos do conhecimento. Contudo, como
cópias desses Objetos Transcendentes existem os objetos com “o” minúsculo, que
são aqueles que percebemos com nossos órgãos da sensibilidade: este homem,
aquela árvore, aquele animal... Estes objetos com “o” minúsculo são como que
duplos imperfeitos, ou meras aparências, dos Objetos com “O” maiúsculo, estes sim os
verdadeiros Objetos do conhecimento, pensava Platão.
Quando passamos para a filosofia moderna o polo se inverte: a ênfase agora
estará no Sujeito, escrito com “S” maiúsculo. O método filosófico desse período
também se altera: não mais a contemplação , mas a reflexão. Enquanto que
na contemplação a Razão buscava fora de si o seu Fundamento, na reflexão ela
encontra em si mesma, em seu interior, o Fundamento que lhe serve de alicerce. A
reflexão é um “dobrar-se sobre si”. Por exemplo, é mediante o método da
reflexão que Descartes encontra no interior da Razão as “Ideias Inatas”, que
não vieram da experiência e nem foram adquiridas. E são elas, as Ideias Inatas,
a base da filosofia e da nova ciência que surgem na modernidade.
A fórmula da filosofia moderna pode
ser assim apresentada : S → o[3]
. O “S” maiúsculo representa a ênfase no Sujeito ( a “res cogitans” de
Descartes, ou a “Razão Transcendental” de Kant) , ao passo que o objeto passa a
girar em torno do Sujeito , e por isso sua grafia com “o” minúsculo. Em Kant,
por exemplo, o “objeto” se torna mero fenômeno: aquilo que aparece para o
Sujeito e é determinado pelas Formas interiores ao Sujeito ( Tempo, Espaço e
Conceitos).
Contudo, assim como o Objeto na
filosofia antiga pressupunha um duplo ou cópia representado com “o” minúsculo,
na filosofia moderna surgirá um sujeito com “s” minúsculo, um sujeito empírico
fenomênico.[4]
Será esse sujeito com “s” minúsculo o suporte dos sonhos, dos desejos, das
“paixões”; também é ele que está submetido ao tempo e ao espaço, unido que está
, de forma indissociável, ao corpo.
Na filosofia contemporânea essa fórmula entra em crise e, com ela, a
ideia mesma de Fundamento. Freud, por exemplo, apontará que existe um “isso” ( o
“id” ou “inconsciente”) que escapa totalmente ao Sujeito e o determina. Marx,
por sua vez, mostrará que esse Sujeito com “S” maiúsculo nada mais é do que uma
construção ideológica representando o sujeito burguês. Inspirando-se na famosa
“dialética do senhor e do escravo”, de
Hegel, Marx argumenta que essa relação entre Sujeito ( com “s” maiúsculo) e sujeito ( com “s”
minúsculo) encobre uma luta de dominação que impede que o trabalhador ( que é
historicamente excluído do lugar de “Sujeito do Conhecimento”) se veja como
classe , para assim reinventar novas formas e processos de conhecimento.
Mais recentemente, o Estruturalismo também pôs em crise a ideia de
“Sujeito”, enfatizando a noção de “estrutura” como instância que determina o
sujeito .
Em Deleuze, noções como “rizoma” , “agenciamento”, “multiplicidade” , o
par “virtual-atual”, também escapam àquela fórmula cujos polos são Sujeito e
Objeto. Ao trazer a questão do Ser, Heidegger também se move em um espaço de
pensamento que não se deixa reduzir às noções de Sujeito ( o “dasein” não é um
Sujeito) e Objeto ( o “Ser” não é um Objeto).
Mas essa “crise dos Fundamentos” também pode significar um novo horizonte
( de problemáticas, de questões, de temas...) para a filosofia, retirando a
referência exclusiva à Grécia e à Europa, e a (re)conectando com filosofares produzidos
na África, no Oriente e na América Latina. Não por acaso, um dos capítulos norteadores do livro O que é
a filosofia?, de Deleuze & Guattari, tem exatamente por título
“Geofilosofia”.
[1] Na
filosofia medieval esse “Objeto” é Deus ( daí a subordinação , naquele período,
da filosofia à teologia).
[2]
Na Grécia Clássica ainda não havia a ideia do sujeito como polo principal do conhecimento:
toda a ênfase recaía no Objeto: Ideia, para Platão; Substância, em Aristóteles.
Para saber mais: “Esboço da vontade na tragédia grega”, Jean-Pierre Vernant (
capítulo do livro: Mito e tragédia na Grécia Antiga).
[3]
Contudo, essa fórmula não se aplica , por exemplo, a Espinosa ( o que revela
sua atualidade). Em Espinosa, o Fundamento
também é o Objeto: a Natureza enquanto Potência Absoluta . Porém, esse Objeto
não é Transcendente, ele é Imanente, sendo o sujeito uma parte , expressão, modo
ou maneira de ser da Natureza
[4]
Uma excelente introdução a esse assunto é o texto de Foucault “O empírico e o
transcendental”, capítulo do livro As palavras e as coisas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário