A essência singular é definida por Espinosa como essência íntima ( cf. Deleuze, Cursos
sobre Espinosa). Há um íntimo na essência em sua realidade singular; ou
melhor, a essência singular é um íntimo
não psicológico. Mas íntimo com o quê? Primeiramente, com ela mesma, uma vez que a essência é um
íntimo, não exatamente um interior. Íntima a si, a singularidade é íntima a
Deus, à Natureza.O íntimo não é um dentro, pois em todo dentro há um fundo. O
íntimo abra-se a um Fora mais próximo que todo interior. Quanto mais entra
neste íntimo, quanto mais o afirma, mais
a essência se torna apta a expressar o exterior. A essência singular conhece o
mundo externo não a partir da ação deste sobre ela, pois de tal ação nascem as
paixões, que são ideias confusas; a essência singular conhece o mundo externo
apoiada na compreensão da Natureza
enquanto produtora da existência dela e do mundo exterior : a Potência Produtora da Natureza somente
pode ser conhecida do interior , jamais mediante o padecer de uma ação externa.
A singularidade da essência é um íntimo em relação ao processo que a
produz. Este processo não lhe resta exterior, mas lhe é imanente. A
singularidade é íntima a um processo eterno de autoprodução. A esse íntimo,
porém, poucos têm acesso, uma vez que a maioria vive instalada em uma
interioridade meramente psicológica, uma interioridade alimentada pelas
imagens, cujo fundo é um buraco negro de ideia fixas e confusas acerca de si,
do outro e da natureza. A intimidade psicológica se alimenta de elementos
fantasmáticos originados das afecções, cuja externalização assume a forma de
confissão ou confidência privada, feita
ao padre, ao psicanalista ou ao amigo de copo.
A essência singular está ligada à existência de partes extensivas
exteriores umas às outras, estas lhe pertencem efetuando sua relação
característica. Nosso corpo é uma relação de corpos, assim como nossa ideia é
uma relação de ideias. O íntimo da nossa ideia é a Ideia da qual ela é uma
dobra, um modo. Quanto mais a essência singular se afirma como expressão singular
da Ideia, mais ela aumenta a relação de ideias que ela é. Esse aumento de ideias
com as quais a ideia singular se relaciona não significa um aumento de
dependência dela para com as ideias com
as quais ela se relaciona; ao contrário, esse aumento é de potência: as ideias
passam a existir em seu íntimo como potências que multiplicam a sua potência de
pensar.
As partes extra partes não têm íntimo, elas são pura exterioridade, ao
passo que uma essência íntima entra em contato com outras essências íntimas em seu próprio
íntimo: cada essência íntima é íntima de outra, e todas são íntimas da Potência
que age em seus íntimos, e nunca de fora. Este íntimo das essências íntimas é
uma comunidade de essências, conforme nos mostra Matheron.
Para a Natureza, não há exterior.Cada essência singular é um grau
diferente dessa Potência. As essências singulares possuem graus de realidade e
potência distintos: umas são mais potentes, outras o são menos. Para que uma
essência íntima compreenda qual essência singular tem mais ou menos potência
que ela, qual lhe é superior ou inferior, é necessário que ela saiba qual sua potência;
do contrário, ela poderá imaginar que pode mais do que pode, ou que pode menos
do que pode. Para que a essência não caia nessas inadequações, não é preciso
que ela conheça, uma a uma, cada grau de potência; na verdade , é preciso que
ela conheça a Potência da qual cada essência singular é um grau. Mas para ela
conhecê-las, é necessário que ela conheça a si mesma enquanto grau da Potência
que possui infinitos graus de realidade e perfeição.
As essências são partes intra
partes, íntimos íntimos a íntimos, cada qual aberto à Potência que não possui
nada que lhe seja exterior ou que lhe exista à parte. As partes extra partes constitutivas da existência não existem
à parte da Natureza, elas existem à parte umas das outras: elas disputam, guerreiam
, rivalizam, matam-se; e assim ignoram
que são Obra do Produtor que só produz Vida.
A amizade e o amor talvez sejam exercícios para viver com outro ser tal íntimo singular, ampliando-o
“horizontalmente”, constituindo o comum produzido pelo bom encontro e que, por
sua vez, também produz a este: quanto mais compreendemos nossa essência íntima,
mais nos tornamos aptos a fazer bons encontros. Mesmo com aquilo que nos
decompõe conseguimos fazer um bom encontro quando de tal ser não ficamos
mais reféns, escravizados; desse modo,
para o homem livre tudo é ocasião para ele ser ele mesmo, ao passo que para o
escravo tudo é ocasião para ele não ser ele próprio, sobretudo quando ele emite
opiniões, e briga por elas, rivaliza e entra em choque tentando impô-la, o que
só produz mais ódio e tristeza. O homem
livre será livre mesmo na prisão, ele se apoiará no amor mesmo diante de quem o
odeia, e com o amor vencerá o ódio, a
impotência, sem destruir aquele que sente o ódio e assim se diminui. É o ódio que precisa ser
destruído, não aquele que o sente. Ódio aumenta ódio. Só o amor destrói o ódio.
Não o amor àquele que nos odeia, mas amor ao conhecimento que cria uma espécie
de escudo que nos protege. A ilusão do passional triste é que ele crê que pode
vencer se diminuindo, o que sempre o leva a diminuir tudo. Se ele buscasse se
aumentar, sobretudo se aumentar em seu íntimo, não mais dependeria do ódio e da tristeza. Só há a constituição do comum
onde se busca o aumentar mútuo, ao passo que o ódio se instala quando um
imagina que sobe fazendo descer o outro.
O comum é um íntimo que duas ou
mais essências singulares produzem para si. O sábio é, antes de tudo, íntimo à
Natureza: íntimo a si, ele se torna
íntimo a tudo, e é sempre pela amizade e amor que ele aos outros se liga . Íntimo a si, à sua essência, o
sábio constitui sua existência de tal modo que seu corpo exerça ao máximo o poder de ser afetado de alegria, uma
vez que o poder de ser afetado não é se tornar indiferente ao que nos acontece, mas extrair
de cada parte do corpo a compreensão de sua necessidade, o que somente se faz
com a alegria do pensar e do compreender. Embora cada parte do corpo permaneça
exterior à outra, cada uma delas se integra à essência íntima que compreende o
que lhes acontece, impedindo que uma queira dominar ou destruir a outra, de tal
modo que o sábio produz amor mesmo onde os outros só vivem o ódio (quando se
compreende a causa do ódio, tal compreensão faz nascer um amor: amor não ao
ódio, mas à compreensão enquanto potência da alma). Esse íntimo a morte não
destrói, pois a morte sempre vem de fora. Quanto mais o sábio afirma e vive
conforme esse íntimo, mais ele se torna íntimo de outros íntimos, e nestes permanece como
aquilo que os afirma também. O sábio torna esse íntimo a sua maior parte, de tal
modo que é sempre por dentro que ele conhece , e é por isso que não o
determinam as imagens, pois é ele que as ordena, e nelas descobre a Graça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário