quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Espinosa : a essência íntima

 

A essência singular  é definida  por Espinosa como essência íntima ( cf. Deleuze, Cursos sobre Espinosa). Há um íntimo na essência em sua realidade singular; ou melhor, a essência singular é um íntimo  não psicológico. Mas íntimo com o quê? Primeiramente,  com ela mesma, uma vez que a essência é um íntimo, não exatamente um interior. Íntima a si, a singularidade é íntima a Deus, à Natureza.O íntimo não é um dentro, pois em todo dentro há um fundo. O íntimo abra-se a um Fora mais próximo que todo interior. Quanto mais entra neste íntimo, quanto mais o afirma,  mais a essência se torna apta a expressar o exterior. A essência singular conhece o mundo externo não a partir da ação deste sobre ela, pois de tal ação nascem as paixões, que são ideias confusas; a essência singular conhece o mundo externo apoiada  na compreensão da Natureza enquanto produtora da existência dela e  do mundo exterior  : a Potência Produtora da Natureza somente pode ser conhecida do interior , jamais mediante  o padecer de uma ação externa.

A singularidade da essência é um íntimo em relação ao processo que a produz. Este processo não lhe resta exterior, mas lhe é imanente. A singularidade é íntima a um processo eterno de autoprodução. A esse íntimo, porém, poucos têm acesso, uma vez que a maioria vive instalada em uma interioridade meramente psicológica, uma interioridade alimentada pelas imagens, cujo fundo é um buraco negro de ideia fixas e confusas acerca de si, do outro e da natureza. A intimidade psicológica se alimenta de elementos fantasmáticos originados das afecções, cuja externalização assume a forma de confissão ou confidência  privada, feita ao padre, ao psicanalista ou ao amigo de copo. dade psicolerca de si, do outro e da natureza. nterioridade meramente psicol

A essência singular está ligada à existência de partes extensivas exteriores umas às outras, estas lhe pertencem efetuando sua relação característica. Nosso corpo é uma relação de corpos, assim como nossa ideia é uma relação de ideias. O íntimo da nossa ideia é a Ideia da qual ela é uma dobra, um modo. Quanto mais a essência singular se afirma como expressão singular da Ideia, mais ela aumenta a relação de ideias que ela é. Esse aumento de ideias com as quais a ideia singular se relaciona não significa um aumento de dependência dela para com as  ideias com as quais ela se relaciona; ao contrário, esse aumento é de potência: as ideias passam a existir em seu íntimo como potências que multiplicam a sua potência de pensar.

As  partes extra partes não têm íntimo, elas são pura exterioridade, ao passo que uma essência íntima entra em contato  com outras essências íntimas em seu próprio íntimo: cada essência íntima é íntima de outra, e todas são íntimas da Potência que age em seus íntimos, e nunca de fora. Este íntimo das essências íntimas é uma comunidade de essências, conforme nos mostra Matheron.

Para a Natureza, não há exterior.Cada essência singular é um grau diferente dessa Potência. As essências singulares possuem graus de realidade e potência distintos: umas são mais potentes, outras o são menos. Para que uma essência íntima compreenda qual essência singular tem mais ou menos potência que ela, qual lhe é superior ou inferior, é necessário que ela saiba qual sua potência; do contrário, ela poderá imaginar que pode mais do que pode, ou que pode menos do que pode. Para que a essência não caia nessas inadequações, não é preciso que ela conheça, uma a uma, cada grau de potência; na verdade , é preciso que ela conheça a Potência da qual cada essência singular é um grau. Mas para ela conhecê-las, é necessário que ela conheça a si mesma enquanto grau da Potência que possui infinitos graus de realidade e perfeição.

As essências são partes intra partes, íntimos íntimos a íntimos, cada qual aberto à Potência que não possui nada que lhe seja exterior ou que lhe exista à parte. As partes extra  partes constitutivas da existência não existem à parte da Natureza, elas existem à  parte umas das outras: elas disputam, guerreiam , rivalizam, matam-se; e assim  ignoram que são   Obra  do Produtor que só produz Vida.

A amizade e o amor talvez sejam exercícios para viver com outro ser  tal íntimo singular, ampliando-o “horizontalmente”, constituindo o comum produzido pelo bom encontro e que, por sua vez, também produz a este: quanto mais compreendemos nossa essência íntima, mais nos tornamos aptos a fazer bons encontros. Mesmo com aquilo que nos decompõe conseguimos fazer um bom encontro quando de tal ser não ficamos mais  reféns, escravizados; desse modo, para o homem livre tudo é ocasião para ele ser ele mesmo, ao passo que para o escravo tudo é ocasião para ele não ser ele próprio, sobretudo quando ele emite opiniões, e briga por elas, rivaliza e entra em choque tentando impô-la, o que só produz mais ódio e tristeza.  O homem livre será livre mesmo na prisão, ele se apoiará no amor mesmo diante de quem o odeia, e com o amor  vencerá o ódio, a impotência, sem destruir aquele que  sente o ódio  e assim se diminui. É o ódio que precisa ser destruído, não aquele que o sente. Ódio aumenta ódio. Só o amor destrói o ódio. Não o amor àquele que nos odeia, mas amor ao conhecimento que cria uma espécie de escudo que nos protege. A ilusão do passional triste é que ele crê que pode vencer se diminuindo, o que sempre o leva a diminuir tudo. Se ele buscasse se aumentar, sobretudo se aumentar em seu íntimo, não mais dependeria do ódio e da tristeza. Só há a constituição do comum onde se busca o aumentar mútuo, ao passo que o ódio se instala quando um imagina que sobe fazendo descer o outro.

 O comum é um íntimo que duas ou mais essências singulares produzem para si. O sábio é, antes de tudo, íntimo à Natureza: íntimo a si, ele  se torna íntimo a tudo, e é sempre pela amizade e amor que ele aos outros  se liga . Íntimo a si, à sua essência, o sábio constitui sua existência de tal modo que seu corpo exerça ao  máximo o poder de ser afetado de alegria, uma vez que o poder de ser afetado não é se tornar  indiferente ao que nos acontece, mas extrair de cada parte do corpo a compreensão de sua necessidade, o que somente se faz com a alegria do pensar e do compreender. Embora cada parte do corpo permaneça exterior à outra, cada uma delas se integra à essência íntima que compreende o que lhes acontece, impedindo que uma queira dominar ou destruir a outra, de tal modo que o sábio produz amor mesmo onde os outros só vivem o ódio (quando se compreende a causa do ódio, tal compreensão faz nascer um amor: amor não ao ódio, mas à compreensão enquanto potência da alma). Esse íntimo a morte não destrói, pois a morte sempre vem de fora. Quanto mais o sábio afirma e vive conforme esse íntimo, mais ele se torna íntimo de  outros íntimos, e nestes permanece como aquilo que os afirma também. O sábio torna esse íntimo a sua maior parte, de tal modo que é sempre por dentro que ele conhece , e é por isso que não o determinam as imagens, pois é ele que as ordena, e nelas descobre a Graça.




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