sábado, 27 de julho de 2024

devir-amendoeira

 

Espinosa dizia que a filosofia não é uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, sua  pluralidade e potência . A Vida nunca termina: ela se metamorfoseia.

Certa vez , conversando  com uma amiga, partilhei com   ela como eu gostaria que fosse a metamorfose que me fizesse permanecer na Vida.

Não ambiciono outra vida no “Além”. Queria continuar numa vida que vicejasse aqui no seio da Mãe-Terra, como a vida verdejante de uma árvore.

Amo livro e árvores. O livro é para a  árvore o mesmo que a borboleta é para a  lagarta: pois o  papel que um dia foi árvore , no livro ele ganha as asas da palavra.

Contudo, para quem escreve um livro a continuidade conquistada é apenas “letral”, porém  metamorfosear-se  numa árvore é fazer parte do  Livro da Vida.

Como amo viver, espero que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer”  ( “desacontencer” é criação de Manoel de Barros ). Mas quando eu “desacontecer”, não quero  ir para debaixo do chão. Prefiro que envolva meu corpo o fogo de que fala  Heráclito , fogo-arquetípico da Vida Imortal.

Assim, não é ao nada das cinzas  que serei reduzido, e sim ao que houver  em  mim de sumo e adubo. Depois quero ser lançado nas raízes de uma amendoeira , ser sorvido por ela e dela fazer parte. Pois a amendoeira é a árvore de que mais gosto.

A amendoeira é prima das oliveiras, e veio clandestina do Oriente  como semente  incrustada na madeira de uma  nau portuguesa que atravessou os oceanos. Nas terras sábias do Oriente, onde  Sherazade  derrotou o poder ameaçador do Sultão, a amendoeira era conhecida como “a árvore mais resistente”.  

Mas não desejo ser lançado nas raízes de uma  amendoeira vivendo em terreno cercado com dono e proprietário, nem quero que seja  uma amendoeira perto de estradas por onde passam carros neuróticos , apressados. Também prefiro que não seja  uma amendoeira isolada,  inalcançável .

Queria então que fosse meu  novo corpo  uma amendoeira que fizesse parte da Floresta da Tijuca, um espaço amplo , horizontado, sem cercados.

Não queria que fosse     uma  amendoeira perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma  amendoeira que somente poderá ser encontrada  por aqueles que amam descobrir caminhos novos: e que a estes a amendoeira possa oferecer sombra e  proteção .

Entrarei pelas raízes e atravessarei o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos  até alcançar  a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de bem-te-vis e  pardais, para quem sabe me tornar um deles e pôr para correr os carcarás...

E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas: que a lápide  seja  apenas a amendoeira florescendo em maio, mês em que nasci.

 

 

“Sou tua árvore da guarda e simbolizo teu outono pessoal.

Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura.”

( esta epígrafe que escolhi para o texto que escrevi é de  “Fala, amendoeira”, de Drummond)

 

(imagem: “Amendoeira em flor”/ Van Gogh)



“Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de
sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus.
Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul.
E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só serve pra poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,
envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros
E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
porque fez amizade com muitas borboletas.”

( “Árvore” / Manoel de Barros)





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