domingo, 23 de abril de 2023

desbravar

 

Em sua carta 121[1], Sêneca faz uma distinção entre conhecer uma determinada realidade e ser uma realidade. Todo conhecimento teórico se faz mediante conceitos. Os conceitos mediam a relação do pensamento com a realidade. Mas ser uma realidade é , como ensina  Bergson, colocar-se imediatamente nela, ou melhor , intuir-se como sendo ela.

Alguém pode ler um livro de ética e conhecer teoricamente  os conceitos de virtudes como justiça  e coragem, ainda que seja um injusto e covarde em suas práticas. Ou seja, alguém pode conhecer o conceito de algo sem ser ou possuir esse algo.

Mas ser justo e corajoso sabe-se por intuição. A intuição é um contato direto, sem mediação, com a realidade que se conhece , sendo. E quem é corajoso não se intui apenas corajoso, também se intui como parte de algo maior que o faz ser corajoso. Intuir-se como algo nada tem a ver com imaginar ser esse algo. Quem apenas imagina, não é; mas quem é , pensa-se e, pensando, age.

A intuição apreende a singularidade de uma determinada realidade e , ao mesmo tempo, a conecta a outra realidade ainda maior da qual a primeira é uma expressão singular. E essa mesma intuição  apreende igualmente  uma realidade ainda maior da qual essa realidade  segunda também é uma expressão, e não uma mediação.

Enquanto a mediação é um colocar-se “entre” , a expressão é trazer para fora ou desdobrar o que está implicado em uma existência, e que a faz ser o que ela é.

 A intuição apreende a parte e o todo, mesmo que desse todo não possa haver conhecimento conceitual ou mediação. Não há mediação que nos conecte com o todo, uma vez que intuir o todo requer despir-se de toda mediação. O todo não está apenas fora, ele também é imanente a cada singularidade que o expressa/desdobra.

Não se deve imaginar o todo como algo fechado, como um círculo. Uma floresta, por exemplo , é o todo-vivo que cada árvore singular sua expressa. O rio é o todo cujas partes são as margens, margens que podem avançar quando as chuvas alimentam o rio de céu. O rio não está contido pelas margens: as margens são apenas o limiar que expressam até aonde o rio pode ir,  expandindo-se.

Uma criança ainda não possui o conceito do que é existir, porém ela possui a intuição de existir. E é essa intuição que a leva a formular  perguntas sobre o seu existir , bem como o existir  de todas as outras coisas. Primeiro é preciso despertar a intuição, potencializá-la, pois somente assim o conhecimento que nascerá dela não será apenas algo abstrato e apartado da vida, um conhecimento que apenas se decora e não se vive.

Não se conhece a vida por mediações que nos separam dela, conhece-se a vida intuindo-a, ou seja, sendo-a, vivendo-a. Quem não tem a intuição de uma realidade às vezes substitui essa realidade por uma mediação abstrata  que apenas a representa , porém quando se parte da intuição pode-se depois construir meios de se aproximar dela: não apenas por palavras, mas também por  sons e tintas , como fazem o músico e  o pintor .

Essas aproximações expressivas devem ser  como o mapa que um desbravador fabrica para dar a conhecer  acerca da paisagem nova que descobriu e percorreu , não sem alegria, com sua mente e corpo.



[1] Sêneca, Cartas a Lucílio.




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