Antes de ouvir Chico, eu o li. Antes
de ouvi-lo como música, eu o li como poesia
que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. Isso aconteceu na escola,
numa época em que ainda pairava sobre nós a ditadura.
Eu não tinha mais do que 11 ou 12
anos. Eu já sabia ler livros : livros de história, de geografia e até livros de literatura.
Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura.
E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver o intelecto. Foi
a poesia presente na canção popular que me fez aprender a ler. Ler não apenas a
letra, mas os mundos que ela expressa: mundos por descobrir.
Li pela primeira vez Chico graças a
uma querida professora de Língua Portuguesa e Literatura do antigo primeiro
grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que, na parte de interpretação de
textos, empregavam os elitistas “parnasianos” , a corajosa professora resolveu
adotar um livro heterodoxo, plural: o livro apresentava as letras de músicas
dos compositores que participaram dos festivais da canção .
Àquela época, tais festivais ainda
eram recentes; porém , por ser bem
pequeno quando eles aconteceram, eu não tinha memória ou vivência deles. Sem
dúvida, aquele livro fazia o que Foucault chama de micropolítica da
resistência.
Quando li “Construção”, de Chico,
experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de
“desterritorialização”. Desterritorializar-se é libertar-se de um território costumeiro, ordinário, “mesmal”.Como
diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda
cartilha, sobretudo as cartilhas que
tentam clicherizar nossa percepção,
palavras e maneiras de pensar e agir.
Ao ler Chico, eu não apenas me
desterritorializava : também me
reterritorializava num território novo composto de sensações e afetos que não
eram apenas pessoais.
Essa desterritorialização me ampliava
para além dos muros da escola: me lançava no mundo, me inseria na pólis, abria
meus olhos para o universo, o de fora e
o de dentro.
Foi a partir dali que me apaixonei
por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler”
,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros , muito
menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos queriam nos adestrar.
Embora eu não entendesse
intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim
ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio que foi ali
que comecei a descobrir em mim, ainda em
embrião, o filósofo.
Quando o pensar e o sentir se tornam
duas asas abertas para voos de (auto)descobertas, experimentamos aquilo
que Deleuze assim chamou: pop’filosofia!
Hoje, 25 de abril: dia em que o povo português derrubou a ditadura de Salazar . A "Revolução dos Cravos" é comemorada não apenas pelo povo português, mas por todos aqueles que combatem toda forma de fascismo, lá e aqui ( meu avô português veio para o Brasil para não servir a Salazar)
-Filme "Capitães de Abril" ( sobre a Revolução dos Cravos"):
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