terça-feira, 25 de abril de 2023

chico e os cravos

Antes de ouvir Chico, eu o li. Antes de ouvi-lo como música, eu o li como poesia  que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. Isso aconteceu na escola, numa época em que ainda pairava sobre nós a ditadura.

Eu não tinha mais do que 11 ou 12 anos. Eu já sabia ler livros : livros de história,  de geografia e até livros de literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura. E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver o intelecto. Foi a poesia presente na canção popular que me fez aprender a ler. Ler não apenas a letra, mas os mundos que ela expressa: mundos por descobrir.

Li pela primeira vez Chico graças a uma querida professora de Língua Portuguesa e Literatura do antigo primeiro grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que, na parte de interpretação de textos, empregavam os elitistas “parnasianos” , a corajosa professora resolveu adotar um livro heterodoxo, plural: o livro apresentava as letras de músicas dos compositores que participaram dos festivais da canção .

Àquela época, tais festivais ainda eram recentes; porém , por ser  bem pequeno quando eles aconteceram, eu não tinha memória ou vivência deles. Sem dúvida, aquele livro fazia o que Foucault chama de micropolítica da resistência.

Quando li “Construção”, de Chico, experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é libertar-se  de um território costumeiro, ordinário, “mesmal”.Como diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha, sobretudo  as cartilhas que tentam clicherizar  nossa percepção, palavras e maneiras de pensar e agir.

Ao ler Chico, eu não apenas me desterritorializava : também  me reterritorializava num território novo composto de sensações e afetos que não eram apenas pessoais.

Essa desterritorialização me ampliava para além dos muros da escola: me lançava no mundo, me inseria na pólis, abria meus olhos para o universo, o de fora e  o de dentro.

Foi a partir dali que me apaixonei por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros , muito menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos queriam  nos adestrar.

Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio que foi ali que comecei a descobrir  em mim, ainda em embrião, o filósofo.

Quando o pensar e o sentir  se tornam  duas asas abertas para voos de (auto)descobertas, experimentamos aquilo que Deleuze assim chamou: pop’filosofia!








 Hoje, 25 de abril: dia em que o povo português derrubou a ditadura de Salazar . A "Revolução dos Cravos" é comemorada não apenas pelo povo português, mas por todos aqueles que combatem toda forma de fascismo, lá e aqui ( meu avô português veio para o Brasil para não servir a Salazar)








-Filme "Capitães de Abril" ( sobre a Revolução dos Cravos"):



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