Dioniso é conhecido como divindade das Artes, mas pouco se menciona que
Dioniso também é Dor. Essa dor associada
a Dioniso não é, porém, como a dor
sofrida por algo que nos machuca. A dor dionisíaca nada tem a ver com a dor provocada
pelos que cultuam a violência. A dor
dionisíaca é como a dor do parto : a dor de gerar algo novo, fruto de termos
sido fecundados .
Toda criação de algo novo é acompanhada por um processo de
dor, dor essa muitas vezes alternando choro e riso, riso e choro. Riso de
contentamento por algo novo que virá : riso
por já vermos, do futuro, o embrião; choro
pelo custo em sacrifício , tempo e esforço. Mas não é só no riso que há a
alegria em criar, também há alegria no choro nascido do esforço por criar algo novo.
Muito diferente da dor dionisíaca é a
dor que fere e ameaça nossa saúde e
integridade. Essa dor provocada pela ação destrutiva pode ser física ou psíquica,
atingir um indivíduo ou a sociedade. Tentar nos ferir e ameaçar com essa dor
destrutiva é a marca dos carrascos.
Mas na dor do parto , símbolo da dor
dionisíaca, corpo e alma se agenciam , tornam-se
um só, no esforço para dar vida a um
novo ser que nascerá de nós, cujo nascimento trará uma alegria que justificará a dor e nos fará compreender a necessidade de
termos sofrido, pondo-nos no limite de nós mesmos.
A dor dionisíaca é solidária à dor da
perda e do luto, e muitas vezes ela própria nasce de uma perda e luto que
encontraram, na arte, remédio e curativo.
Sócrates dizia que a filosofia é “maiêutica”,
prática de partejar, sendo o filósofo uma espécie de parteiro. Porém, a
arte é um processo mais originário, sem ela não há vida a partejar. Por isso , o
artista é aquele que é fecundado pela arte que o faz criar, transmutando a dor na alegria de se ter superado , reinventando-se.
O treino pesado da bailarina ao custo
de dolorosos calos nos pés, para que depois , dançando, ela converta o peso em leveza; as horas fatigantes de ensaio
da cantora , para que no palco ela nos desperte o cantar; a preparação exaustiva
dos atores , para que ganhem vida seus personagens; os longos dias, meses e até mesmo anos do
filósofo ouvindo os livros, para que
ele possa um dia, quem sabe, escrever seu próprio livro e ter o que falar; a indignação doída que nos une na rua , para que possamos gerar uma realidade social
nova, vencendo os carrascos; tudo isso é dor que se justifica por nosso desejo e
esforço por partejar algo novo : um livro,
um poema, uma música, uma aula ou um momento novo na nossa história.
Evoé, Dioniso!
“Quando uma ideia nos fecunda , também sofremos angústia de parto. ” (Plotino)
Obs.:Jean Pierre-Vernant , um grande estudioso da mitologia, argumenta que não é correta a expressão “Dioniso, o Deus das Artes” , ou “Eros, o Deus do Amor”. Pois essas expressões podem dar a entender erradamente que Dioniso é uma coisa e a arte, outra; ou que o Amor é apenas uma posse de Eros. Segundo Vernant, Dioniso é a arte, Eros é o amor, Atena é a sabedoria. Cada nome divino simboliza uma Potência da vida e do cosmos, que pode expressar-se de maneiras distintas ao longo da história, como nos mostra os estudos e a prática de Nise da Silveira. Assim, Dioniso não é a divindade da dor de criar, ele é a dor de criar enquanto processo intenso que, muitas vezes, nos coloca no limite de nós mesmos. Zeus não é o deus da ética e da justiça, ética e justiça são Potências da vida que podem também agir em nós, desde que nos coloquemos vivos com a máxima potência de que formos capazes. Eros não é o deus do amor, ele é o amor enquanto força cósmica que se manifesta de mil maneiras, inclusive de maneiras novas ainda a serem criadas.
Os versos recitados por Bethânia são do poema “Em defesa do Poeta”, da poeta portuguesa Natália Correia :
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