sexta-feira, 11 de junho de 2021

dioniso : arte, dor e alegria

 

Dioniso é conhecido como  divindade das Artes, mas pouco se menciona que Dioniso também é  Dor. Essa dor associada a Dioniso não é, porém,  como a dor sofrida por algo que nos machuca. A dor dionisíaca nada tem a ver com a dor provocada pelos que cultuam a violência.  A dor dionisíaca é como a dor do parto : a dor de gerar algo novo, fruto de termos sido fecundados .

Toda criação  de algo novo é acompanhada por um processo de dor, dor essa muitas vezes alternando choro e riso, riso e choro. Riso de contentamento por algo novo que virá :  riso por já vermos, do futuro,  o embrião; choro pelo custo em sacrifício , tempo e esforço. Mas não é só no riso que há a alegria em criar, também há alegria no choro nascido do esforço por criar algo   novo.  

Muito diferente da dor dionisíaca é a dor que fere e  ameaça nossa saúde e integridade. Essa dor  provocada pela  ação destrutiva pode ser física ou psíquica, atingir um indivíduo ou a sociedade. Tentar nos ferir e ameaçar com essa dor destrutiva é  a marca dos carrascos.

Mas na dor do parto , símbolo da dor dionisíaca,  corpo e alma se agenciam , tornam-se um só, no esforço  para dar vida a um novo ser que nascerá de nós, cujo nascimento trará uma alegria que justificará  a dor e nos fará compreender a necessidade de termos sofrido, pondo-nos no limite de nós mesmos.

A dor dionisíaca é solidária à dor da perda e do luto, e muitas vezes ela própria nasce de uma perda e luto que encontraram, na arte, remédio e curativo.

Sócrates dizia que a filosofia é  “maiêutica”,  prática de partejar, sendo o filósofo uma espécie de parteiro. Porém, a arte é um processo mais originário, sem ela não há vida a partejar. Por isso , o artista é aquele que é fecundado pela arte que o faz criar,  transmutando a dor  na alegria de se ter superado , reinventando-se.

O treino pesado da bailarina ao custo de dolorosos   calos nos pés,  para que depois , dançando, ela converta  o peso em leveza; as horas fatigantes de ensaio da cantora , para que   no palco ela nos desperte o  cantar; a preparação   exaustiva  dos atores  , para  que ganhem vida seus personagens;  os longos  dias,  meses e até mesmo  anos    do filósofo ouvindo  os livros, para que ele  possa um dia, quem sabe,  escrever seu próprio livro e ter o que falar;  a indignação doída  que nos une na rua  , para que possamos gerar uma realidade social nova, vencendo os carrascos; tudo isso é dor que se justifica por nosso desejo e esforço por  partejar algo novo : um livro, um poema, uma   música,  uma aula ou um momento novo na nossa história.


Evoé, Dioniso!

 

“Quando uma  ideia nos fecunda , também sofremos  angústia de parto.  ” (Plotino)


Obs.:Jean Pierre-Vernant ,  um grande estudioso da mitologia,  argumenta que não é correta a expressão “Dioniso, o Deus das Artes” , ou “Eros, o Deus do Amor”. Pois essas expressões podem dar a entender erradamente que Dioniso é uma coisa e a arte, outra; ou que o Amor é apenas uma posse de Eros. Segundo Vernant, Dioniso é a arte, Eros é o amor, Atena é a sabedoria. Cada nome divino simboliza uma Potência da vida e do cosmos, que pode expressar-se de maneiras distintas ao longo da história, como nos mostra os estudos e a prática de Nise da Silveira. Assim, Dioniso não é a divindade da dor de criar, ele é a dor de criar enquanto processo intenso  que, muitas vezes, nos coloca no limite de nós mesmos. Zeus não é o deus da ética e da justiça, ética e justiça são Potências da vida que podem também agir em nós, desde que nos coloquemos vivos com a máxima potência de que formos capazes. Eros não é o deus do amor, ele é o amor enquanto força cósmica que se manifesta de mil maneiras, inclusive de maneiras novas ainda a serem criadas.




 

Os versos recitados por Bethânia são do poema “Em defesa do Poeta”, da poeta portuguesa Natália Correia :

 


 



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