quinta-feira, 25 de outubro de 2018

a fortaleza


No poema “Agroval”, Manoel de Barros narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em risco: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. Entre seu abdômen e o chão úmido  a arraia inventa um “pantanal menor”, um pantanal de resistência. Para que a vida não morra, a arraia convida tudo o que vive para vir morar sob suas asas. Migram e se instalam ali não apenas bichos, instalam-se  também sementes e brotos de futuras flores, de tal modo que debaixo da arraia tudo o que vive acha um  ventre. Sob a proteção de tal Gaia, a vida continua, resiste, cresce, fortalece-se; sob o coração da arraia acontecem alianças, agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois lá fora, quando as águas secam,  os predadores  sorrateiros lucram com a morte, e ficam à espreita . Mas a arraia é forte, resistente, não a vencem  os predadores oportunistas. Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência  pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais ,em luta  contra a tirania,   nomearam  Quilombo?

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”(Manoel de Barros)

“Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas”(Manoel de Barros)



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*"Agroval" é um neologismo criado pelo poeta e significa: "lugar onde se cultiva a vida".

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