terça-feira, 2 de outubro de 2018

- orfeu, eurídice & manoel


Certa vez Orfeu, ainda deitado na cama pela manhã, vê Eurídice sentada diante da penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma canção , um  ritornelo. Ela apenas se olha, não se julga ou mede, tampouco se compara a alguém ausente. Ela está plenamente ali, nos gestos do seu corpo, não sendo apenas um corpo, porém. Orfeu fica paralisado olhando...Eurídice se percebe olhada,  vira-se e, assustada, pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer o que fazia. Orfeu então lhe pede: “Repete o que você estava fazendo!...” , “Mas o que eu estava fazendo?”, “Você se  olhava sem ser narcisicamente,  estava em si plenamente, mas transbordando, cantarolando...”. “Era assim que eu estava fazendo?”, tenta Eurídice repetir o que fizera. “Não, não é assim que era...”, diz Orfeu. Por mais que  Eurídice  tentasse, ela não conseguia repetir , de forma programada, o que vivera de forma espontânea, sem distância com a vida.
Orfeu  percebeu então que vira o que se chama de “graça” (não no sentido religioso), cujo o contrário é a des-graça. A graça  é  uma espontaneidade que não se  explica por outra coisa senão por si mesma. As crianças a vivem o tempo todo, os adultos se esqueceram dela...A graça acontece não quando a gente quer. Não é pelo querer que se alcança esse estado. Ao contrário, o viver posado e “acostumado” nos afasta dele : quando tentamos dominar ,de fora,  esse acontecimento, estranhamente percebemos que ele  se parece com nada... Na mitologia , “Eurídice”, o par de Orfeu, também é um dos nomes da alma ,   como  também são “Psiquê” e “Pneuma” (“Sopro”) . Assim, é poeta quem canta com a alma em graça, existindo sem separação com o existir, sem precisar de  mais nada.



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