Certa vez Orfeu, ainda deitado na
cama pela manhã, vê Eurídice sentada diante da penteadeira penteando-se e cantarolando
baixinho uma canção , um ritornelo. Ela
apenas se olha, não se julga ou mede, tampouco se compara a alguém ausente. Ela
está plenamente ali, nos gestos do seu corpo, não sendo apenas um corpo, porém.
Orfeu fica paralisado olhando...Eurídice se percebe olhada, vira-se e, assustada, pergunta: “O que
foi!?”, parando de fazer o que fazia. Orfeu então lhe pede: “Repete o que você
estava fazendo!...” , “Mas o que eu estava fazendo?”, “Você se olhava sem ser narcisicamente, estava em si plenamente, mas transbordando, cantarolando...”.
“Era assim que eu estava fazendo?”, tenta Eurídice repetir o que fizera. “Não,
não é assim que era...”, diz Orfeu. Por mais que Eurídice
tentasse, ela não conseguia repetir , de forma programada, o que vivera
de forma espontânea, sem distância com a vida.
Orfeu
percebeu então que vira o que se chama de “graça” (não no sentido
religioso), cujo o contrário é a des-graça. A graça é uma
espontaneidade que não se explica por
outra coisa senão por si mesma. As crianças a vivem o tempo todo, os adultos se
esqueceram dela...A graça acontece não quando a gente quer. Não é pelo querer
que se alcança esse estado. Ao contrário, o viver posado e “acostumado” nos
afasta dele : quando tentamos dominar ,de fora,
esse acontecimento, estranhamente percebemos que ele se parece com nada... Na mitologia ,
“Eurídice”, o par de Orfeu, também é um dos nomes da alma , como também são “Psiquê” e “Pneuma” (“Sopro”) . Assim,
é poeta quem canta com a alma em graça, existindo sem separação com o existir,
sem precisar de mais nada.
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