domingo, 16 de abril de 2017

o alfabeto de espinosa



                                                                                                                                                                 Tenha o que dizer,
e cada palavra irá ao lugar certo.
Lewis Carroll
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  Uma letra isolada é um ser que pouco ou nada diz: se a repetirmos, ela apenas  reproduz a si mesma, sozinha, como um átomo, um ego. Mas quando uma letra encontra outra, havendo composição,desse encontro nasce um novo ser: a sílaba. A sílaba é a primeira criação de algo  comum : ela é o inauguramento do comum.A sílaba diz mais do que pode dizer cada letra isolada que lhe está integrada. 
Mesmo as sílabas também podem se juntar : dessa composição nasce um ser que não se reduz às sílabas ou às letras das quais a sílaba é feita. Esse novo ser é a palavra. Dentro da palavra as sílabas crescem, ao mesmo tempo em que crescem, dentro das sílabas,   as letras. As palavras aumentam as letras e as sílabas : não em tamanho, como o faz uma lente, mas em potência de existir, como parte de um comum de maior amplitude. Essa potência não pode ser medida com régua, pois seu tamanho equivale ao sentido que a palavra se torna apta a produzir.Dentro da palavra a letra existe mais do que sozinha, isto porque ela passa a existir agenciada, em composição. Mais do que a mera lógica ou a gramática, é o afeto que já se faz presente aí, unindo uma letra à outra :"minhas palavras se unem mais por afeto do que por sintaxe"(Manoel de Barros). É o afeto, e não a posse, o motor autêntico de todo  comum. O autêntico comum   não é o pensar igual ou o fazer igual, mas aumento de amplitude conquistada em agenciamento.Amplitude conquistada é aumento do poder de pensar e de agir , como potencialização do existir.
Na sílaba, cada letra singular não perde sua diferença. Ao contrário, esta é aumentada no encontro com outras diferenças que com ela se compõem. As palavras também podem se juntar, se compor. Essa composição é a produção de um novo ser que, por sua vez, as produz também, uma vez que as potencializa. Esse novo ser é a  frase. Nesta estão as letras ainda mais potencializadas, assim como as sílabas e as palavras.Das frases nascem ainda os textos, e destes os livros, enfim. O livro é o comum de maior amplitude que integra, sem negá-las, as amplitudes menores enquanto  graus seus ou expressões imanentes
Os livros nascem não por causa da letra,das sílabas , das frases ou dos textos. Os livros nascem da necessidade do espírito em se expressar. É pelo pensar que o espírito se expressa: o pensar  é sua maneira de agir
Visto da perspectiva do finito, parece que é a letra que vem primeiro, parece que o ser isolado tem primazia. No entanto,louca seria a letra que julgasse ser livre existindo à parte de toda sílaba, palavra, frase, livro. Pois é na imanência do livro, como parte de seu sentido, que uma letra de fato pode ser livre, expressando a si mesma naquilo que expressa o livro. 
Dessa maneira,vendo as coisas da perspectiva do eterno, da liberdade , sub specie aeternitatis , é o pensar que vem primeiro, pois ele é a produção de sentido que integra letras, sílabas, palavras, frases, textos, livros. É o infinito que se expressa em cada finito,  integrando-os em uma realidade superior na qual eles aumentam de potência, tal como a letra aumenta de potência na sílaba, a sílaba na palavra,a palavra na frase, a frase no texto, o texto no livro, e o livro no pensar, enquanto potência viva de produção de Sentido.
 Em Espinosa, a Natureza, ou Deus, é o Pensar Vivo,infinito, do qual cada pensar finito é uma letra. O infinito é o Incomum .
Não é a letra que faz nascer o livro, nem o livro faz nascer o pensar. É o pensar que já está presente na imanência da letra, como desejo ímpar, afirmativo. Assim, o finito passa a existir mais potente, integrado no Sentido que a tudo produz e em tudo se expressa, diferencialmente.

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