terça-feira, 25 de abril de 2017

meu primeiro mestre

"A maior perfeição que podemos alcançar para nós mesmos é servir
de instrumento para que os outros possam conquistar a perfeição deles próprios".

Espinosa



Dos quatorze anos aos dezesseis fiz capoeira. Passados já mais de trinta anos desse fato, vejo hoje que aquelas aulas de capoeira foram , na verdade,minhas primeiras lições de filosofia, pois meu professor de capoeira era um verdadeiro Mestre. Seu nome: Joãozinho. Nós o chamávamos de Mestre Joãozinho. Ele era um homem simples, negro, do povo. Para sobreviver, ele trabalhava em uma feira , pois a maioria de nós não podia pagar pelas aulas de capoeira. Ele falava pouco, mas como nos dizia nesse pouco! Aprender capoeira com ele era uma verdadeira iniciação em um tipo de vida que não aceitava a covardia, a ostentação, a vaidade e a soberba. Muitas vezes ele nos dizia: “Se eu souber que algum de vocês usou o poder que lhes ensino para se vangloriar em disputas ou buscar fama em brigas , ou simplesmente para aparecer , esse que agir assim não será mais digno de continuar aprendendo como ser guerreiro”.Não foram poucos os que ele expulsou...Ele assim fez sem ofensas, grosserias ou violência, porém com firmeza.
Ele observava muito como procedíamos,  parecia formar um conhecimento de cada um de nós a partir da observação do que fazíamos, e não do que dizíamos apenas . Ele era atento escutador da "eloquência das ações", como dizia Cícero.Por exemplo, havia duas formas de lutarmos a capoeira entre nós. A primeira delas era simplesmente uma brincadeira quase . Geralmente, quando observamos grupos de capoeira se exibindo para um público mais amplo, é a essa forma de luta dançada que assistimos. A segunda forma de luta, porém, era algo mais sério. À primeira vista, parecia uma luta de verdade para vencer o outro, quase uma briga. Muitos interpretavam dessa forma, chegando a golpear com violência calculada seu parceiro de disputa. Várias vezes eu observava o rosto do Mestre Joãozinho durante essas lutas mais sérias, nas quais os mais desonestos se valiam de artifícios pouco nobres.Via o Mestre  reprovar silenciosamente os mais violentos que, cheios de si, imaginavam conquistar uma boa imagem junto ao Mestre. Que iludidos...
Confesso que eu não apreciava muito esses enfrentamentos onde tudo se podia, porém  não fugia deles. Esses enfrentamentos belicosos nos provavam de muitas formas ( isso tudo  aprendi depois, embora fosse um conhecimento que nunca era dado diretamente pelo Mestre Joãozinho). Primeiramente, era preciso procurar como parceiro de luta alguém que fosse um “igual”, ou seja, alguém que tivesse um poder assemelhado ao nosso. Isso exigia de nós uma constante e renovada observação das capacidades dos outros, de seus avanços e virtudes, mas também de seus pontos fracos. Era a partir das virtudes e pontos fracos dos outros que nós devíamos fazer uma idéia das nossas próprias virtudes e fraquezas. Superando um igual, superaríamos a nós mesmos. Porém, quem escolhia lutar com um mais fraco , nada mais do que fraqueza estaria demonstrando. E quem, ao contrário, buscasse medir-se com um mais forte, estaria dando provas de que era um pretensioso. Eram autênticas aulas de ética e de psicologia observar essas disputas , nas quais a maioria perdia, frente ao Mestre,  por   subestimar um superior ou  explorar um inferior, fazendo-o de escada.Isso tudo fazia parte do aprendizado de como se conduzir na observação de nós mesmos diante daqueles que são mais capazes do que nós, por já estarem em um nível superior, ou daqueles que nos são inferiores ,por ainda não terem alcançado o mesmo patamar onde estávamos. Mas para distinguir estes daqueles era preciso, antes, sabermos em que patamar estávamos, e isso não se fazia apenas com o conhecimento de nossas virtudes. Fazia-se necessário saber também nossas fraquezas. E isso nós aprendíamos muitas vezes ao preço de derrotas.
 Um dos últimos aprendizados que tive, e dos mais importantes, tinha como suporte o rosto de desaprovação do Mestre Joãozinho diante daqueles que, nas lutas mais sérias, golpeavam o adversário e , aparentemente, venciam a luta. Certo dia, então, tomei coragem e perguntei diretamente ao Mestre Joãozinho o motivo daquela desaprovação. Parecendo esperar que alguém lhe perguntasse isso , embora ele cuidasse para que seu rosto não fosse enfático nas expressões de reprovação ( na verdade, ele sempre esperava que nós soubéssemos perceber as sutilezas...), o Mestre me disse mais ou menos as seguintes palavras: “ A essência da capoeira é demonstrar poder. Porém o verdadeiro poder não está em vencer o outro com um golpe violento, e sim mostrar ao outro que poderíamos vencê-lo se quiséssemos, mas que disso não precisamos para afirmar nosso poder diante da sabedoria da capoeira.Não é destruindo o outro que se fica mais forte, fica-se mais forte sendo para si e  para o outro um exemplo de como não se perder. Derrotar o outro é uma questão de força, ser um mestre na capoeira é uma questão de personalidade, como força da mente. A capoeira não é para ensinar a vencer o outro, ela é para ensinar a vencer a nós mesmos, vencer o que em nós é fraco."
Essas foram umas das últimas palavras que ouvi do Mestre Joãozinho. Para tristeza de todos nós, ele foi morto com um tiro nas costas ( só mesmo dessa forma se poderia derrubá-lo...) , quando saía à noite do trabalho . Até hoje não se sabe quem foi o covarde que o golpeou assim.

 Capoeira, Rugendas ( 1825)







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