sexta-feira, 14 de abril de 2017

a ideia de democracia em espinosa

Mesmo quando estive muito doente,
jamais fui doentio.
Nietzsche

Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo,
Manoel de Barros

Do ponto de vista do direito natural não há delito, pois não existe o justo ou o injusto nesse âmbito. No direito natural  cada um   segue seu conatus, segue portanto sua natureza, e faz tudo para conservá-la."Natureza" não é apenas o rio, a pedra, o bicho... Natureza é tudo o que existe e se esforça para perdurar existindo. Natureza é existência.Os seres que existem desejam o mais que podem continuar existindo, e esse desejo constitui um direito, o primeiro de todos: ele não está codificado ou escrito, ele não nasce de um legislador. Ele brota junto com o próprio nascer de cada coisa: é a vida mesma, a vida de cada coisa se esforçando para continuar viva. Nesse âmbito da existência, a vida não quer o Bem, o Mal, a Verdade...Ela quer apenas uma coisa: ela quer tão somente a si mesma, e a isto quererá com o máximo de força que tiver, pois a vida nada é senão esse máximo de força para ser vida. Esse é seu direito, sua força, sua saúde.
O direito natural não é o direito social ou civil .O direito natural  antecede a formação da sociedade. Contudo, ele não é “anti” ou   a-social, dado que  tais prefixos nada são sem o social que lhes confere um sentido. Mesmo a ideia de “margem”, quando se diz que alguém ou algo está à margem do social, pressupõe já um social  constituído.O direito natural não é anti ou a-social: ele é pré-social
Esse "pré", no entanto,  não indica anterioridade histórica no tempo. É um pré  no sentido  lógico e ontológico. Nenhuma sociedade pode eliminá-lo sem eliminar a si própria, pois o ontológico precede o sociológico.  Pode-se dizer que o direto natural é uma abertura que toda sociedade mantém para a natureza: as sociedades diferem no espaço e no tempo, mas sempre o mesmo é o direito natural. É essa abertura que  livra as sociedade de se enrijecerem  em  formalismos de toda ordem, dos quais o mais perigoso é o formalismo jurídico ( que tanto pode favorecer às espertezas antidemocráticas...). Toda sociedade é histórica, mas não a natureza à qual ela deve se abrir, e que a antecede como o eterno antecede o temporal. Toda autêntica "desobediência civil" deve ser, antes de tudo,  uma obediência ou afeto pelo ontológico. 
Contudo, é uma abstração imaginar que possa existir um direito natural a par de um direito social constituído, assim como é uma abstração imaginar que possa existir homem sem uma sociedade, tal como imaginaram os filósofos políticos clássicos. No direito natural não há o justo ou o injusto, isso é certo. Contudo, não há homem que exista em uma sociedade sem o justo e o injusto. Mas de onde vem o justo e o injusto? Eles somente podem vir das regras instituídas pelo homem em sua liberdade de co-instituir sua liberdade com outros homens.O Justo não é uma ideia pairando num Céu Inteligível, tampouco o Injusto lança raízes em uma suposta essência  Demoníaca do homem. O justo e o injusto são valores criados, inventados. São as regras que devem expressar tais valores.Mas por que tais valores foram criados? Os valores foram criados para serem os instrumentos de potencialização do direito natural do homem. Não há uma separação entre o natural e o social, pois o próprio natural é uma comunidade ontológica , uma democracia absoluta. 
Nesse sentido, as filosofias da história e do direito civil abrangem apenas as sociedades constituídas e os modos pelos quais elas se relacionam com isto que as ultrapassa em potência, a natureza,e que está aquém de toda história. Logo, está aquém de noções como evolução e involução, progresso ou decadência. As sociedades progridem ou decaem , tendo em vista os valores que elas determinam para si mesmas. Por isso, é impossível a uma sociedade conservar-se  em uma duração temporal sem fim. Quanto mais ela  se esforça para isso, mais toma a feição de um império cujo mandatário se revestirá de atributos divinos sobrenaturais. 
Decerto que uma sociedade não pode ter  uma duração sem fim, como não o pode ter qualquer indivíduo que existe. É por isso que toda sociedade é histórica, inclusive os valores que a sustêm. Porém, de todas as sociedades históricas, a que mais tem potência para durar é a sociedade democrática: mesmo que ela não exista de fato, sempre existe a reivindicação dela. Onde ela não existe , ela é, por isso mesmo , reivindicada , desde o momento onde os homens cessem de servir ao déspota ou  ao Estado, e busquem exercer a conservação de suas próprias potências, a começar pela liberdade de pensar, pois estas potências só podem aumentar no auxílio mútuo, e não no servir exclusivamente a um só, mesmo que seja o próprio ego. E quando a democracia já existe, há sempre a tarefa de potencializá-la. Nesse sentido, embora histórica, a sociedade democrática é a que mais é absoluta, vez que ela é a expressão social do próprio direito da natureza. Em Espinosa, "conservar a própria existência" não significa algo estático ou conservador ( no sentido moral ou político). Para o filósofo, somente o que é criado pode ser conservado. Assim, conservar a existência democrática é continuar a produzi-la, mantendo-a livre, viva, potente. 
Ser absoluta não significa ser exatamente eterna. Ab-soluto: o que não pode ser dissolvido, soluto. Mesmo que sejam dissolvidas as regras e as constituições, não pode ser dissolvido o desejo de democracia do homem, desde que o homem seja de fato um homem, e não um servo ou escravo . O homem do poder e da tristeza  pode querer dissolver a civilização, seja com  bombas ou pela corrupção. Contudo, esse poder (potesta) não é ab-soluto, pois nenhum poder (potesta) é absoluto. Saber do limite desse poder, e resistir a ele, nada tem a ver com esperança, otimismo ou ingenuidade. Tem a ver com o pensar, com a filosofia, com a saúde, enfim, com a potência ( potentia). Ou a filosofia é isso, essa resistência criativa e democrática, ou então não é nada. 
O Estado nasce quando delegamos nosso poder de agir, não o de pensar. O Estado surge da delegação do nosso poder de agir. A potência de pensar  é sempre um fato natural, privado: o pensar é sempre potência indelegável ( ninguém pode pensar por ninguém, embora  alguém possa  ser o agente do pensar para um outro, desde que haja um bom encontro, um agenciamento). O pensar  é privado não porque dependa da atividade econômica ou porque nasça no interior de um oikos, de uma casa , de uma família. Ele é privado porque ele nasce na imanência  do espírito , enquanto ideia viva do corpo. 





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