domingo, 9 de junho de 2024

A multitudo de Espinosa

Segundo Espinosa, a diferença que existe entre a ideia adequada e a inadequada é sentida em nós por algo que não é totalmente teórico ou apenas ligado à inteligência livresca, acadêmica. Segundo ele, a ideia adequada “como que nos segura pela mão e conduz”. A ideia inadequada, ao contrário, põe-nos à parte e nos isola: nos isola dos outros, nos isola da compreensão, nos isola de nós mesmos. Ela nos isola sobretudo daquilo que podemos.

Com-preender: apreender junto. A ideia adequada nasce da compreensão, e compreender é mais do que o mero conhecer. Assim, a ideia adequada não nos diz,  ordenando: “Eu vou na frente, e você vai atrás, me seguindo. E não aceito desvios! Mantenha o foco!”. Ela também não nos diz aonde ir, apenas apontando o caminho e ficando parada, sem nos acompanhar. Diferentemente, a ideia adequada estende a mão, espera pela nossa, e vai junto, ao lado, encorajando que caminhemos com nossas próprias pernas, até que nossos passos compreendam o ritmo dos passos dela e, com esforço cada vez menor, mas sempre com algum esforço, sigamos em frente, perseverantemente.

Certa vez, antes de começar uma aula, eu estava hesitante, estanquei. Até que uma ideia adequada estendeu sua mão para mim. Então, eu a segurei, nasceu a confiança e , agenciado com a ideia, caminhei. A ideia adequada me auxiliava na compreensão. E toda ideia adequada fornece a compreensão não apenas dela, mas sobretudo de nós mesmos.

Era a minha mão esquerda, a mão do coração, que estava unida à mão  da ideia adequada. Virei para olhar para ela. A minha compreensão dela então aumentou, pois ela também estava de mão dada com outra ideia, e , através dela, compreendi essa outra ideia  também. E esta igualmente não estava solitária: ela também estava de mão dada com outra ideia dela diferente. Minha compreensão então aumentou, pois em primeiro lugar, e antes de tudo, aumentava minha compreensão de mim mesmo. Eu aumentava não em tamanho ou prepotência, eu aumentava por dentro e, aumentando eu mesmo, aumentava o caminho. E outra ideia estava unida à esta última, e esta  à outra...de tal modo que não havia última, apenas meio, processo...Eu fazia parte de uma conexão de ideias, de um agenciamento de ideias, agenciamento este do qual eu era um elo, e não um ponto-ego cartesiano.

A primeira ideia foi um intercessor para mim. Intercessor: “aquele que abre portas”. Reparei então que a conexão de ideias se estendia ao horizonte, tornando tudo horizonte, e assim elas me faziam ir para além do aqui e agora. Eu permanecia ligado ao aqui e agora, contudo o potencializava pelas ideias que se abriam e me conectavam com o horizonte de ideias. Pois as ideias não são muros ou cercas, elas são e formam  aberturas , horizontamentos, diria o poeta Manoel de Barros.

Até que reparei, ainda sem olhar, que minha mão direita, que eu supunha sozinha, na verdade não estava só. Havia também outra mão a segurando, de tal modo que eu também conduzia, eu que era, no entanto, conduzido pela conexão de ideias, e não mais apenas por aquela primeira ideia que me tirou do medo, da desconfiança  e da limitação. 

A primeira ideia me produziu um deslimite , como também me produz um deslimite a poesia de Manoel. Virei-me então para ver quem segurava minha mão e ia também comigo e, através de mim, alcançava o horizonte. Era uma pessoa que me ouvia. E, ao lado dela, segurando também  sua mão, havia outra pessoa. E depois outra, e outra...Até que também vi, fazendo parte daquela conexão que conduz e horizonta , também vi um menino de rua , que largou seu canivete e confiou dar a mão à educação. Vi também uma criança que, na sua inocência, imaginava que brincávamos de roda ( e , olhando bem, estávamos mesmo a brincar...);vi também um indígena, vi depois um homem da lei que, largando os códigos, deixou-se conduzir pela justiça; vi ainda  uma borboleta recém saída de sua metamorfose; vi Manoel de Barros também conectado  à nossa conexão : ele sorria com aquela nossa peraltagem... Tentei ver quem era então o último daquela conexão, mas parecia não haver, tampouco havia mais o primeiro.




 


sábado, 8 de junho de 2024

Os Mefistófeles de ontem e de hoje

 

 Uma das funções da educação é mudar as pessoas, por dentro e por fora, em suas ideias e  ações. Uma criança que se educa, por exemplo,  cresce por dentro e por fora, deixa de ser infantil ( o adulto que não se educa cresce apenas por fora, permanecendo infantil por dentro, isto é, imaturo).

A educação produz ideias críticas e criativas, potencializando a mente para ser também autocrítica. A educação muda a criança: faz nascer nela a cidadã. A educação não muda a criança para ela deixar de ser si mesma, a educação muda a criança para ela se desenvolver , se potencializar e descobrir a si mesma.

Todos já repararam nisto: a Inteligência Artificial e seus algoritmos não mudam as pessoas, e sim reforçam o que as pessoas já são. Se uma pessoa pesquisa as coisas mais absurdas e vis na web, a IA e seus algoritmos fornecem mais do mesmo , em profusão e quantidade, e com isso extrai lucro até mesmo das perversidades e vilezas de quem procura tais conteúdos na web.

 A IA e seus  algoritmos não desenvolvem o espírito crítico e nem a independência de pensamento . Aliás, a IA não lida com conteúdos, pois ela “entende” apenas aquilo que os linguistas chamam de “significante”. O significante é a parte material da linguagem, enquanto que o “significado” é o conteúdo que se forma numa mente ou consciência.

A IA entende apenas o significante que digitamos ou falamos para ela, e traduz esse significante para uma linguagem que é dela, uma linguagem matemática   indiferente aos valores. A  IA  não possui mente ou consciência, e é por isso que ela pode servir aos acéfalos e os acefalizar  ainda mais .

O problema não está na IA , claro, e sim no uso que se faz dela. Mas o que esperar do uso da IA de alguém que se identifica com um “rato”? ( como o governador “Ratinho Jr” do Paraná que está privatizando as escolas públicas para colocar IA no lugar dos educadores). O que esperar de um governador autoritário ( o de SP) que quer impor como modelo para as escolas não a pólis, a civitas, mas a caserna?

 Em ambos os projetos, os dois “ratos” querem  empregar a IA para privatizar e militarizar as escolas , amordaçando ou tirando o emprego dos  educadores.

Isso explica o ódio desses negacionistas da educação em relação à filosofia , à sociologia e às artes.

Não por acaso, Mefistófeles não queria a inteligência de Fausto, pois Mefistófeles sabia que a inteligência de Fausto não era sua inimiga. Mefistófeles, o “Diabo”, queria era comprar o caráter e o coração de Fausto , pois somente o caráter e o coração (como sedes do Afeto)   podem ser, quando potencializados pela educação emancipadora, nossa resistência pensante, nossa bússola orientadora , nosso remédio curador  e nossa salvação individual e coletiva.




                                             (Chico fará 80 anos no próximo dia 19)



quarta-feira, 5 de junho de 2024

Espinosa: o ébrio...

 

                            ESPINOSA: O ÉBRIO DE REAL[1]

 

Referindo-se a Espinosa, Roman Rolland dizia que não capta toda a potência do filósofo quem apenas o etiqueta como um “racionalista”, tampouco compreende e sente todos os sentidos que pulsam na Ética quem apenas se detém em sua forma de exposição geométrica.

Para Roman Rolland, Espinosa é um “realista” singularíssimo e único em seu “realismo”, pois ele não é um realista à maneira daqueles que opõem o Real ao  Possível, a Forma à  Potência . Espinosa é um “ébrio do Real”[2], assim o define Romand. Espinosa é um embriagado pelo Absolutamente Infinito.

Nós não somos Deus, nós somos em Deus, e sem Deus não podemos existir e nem sermos concebidos , sobretudo sermos concebidos/compreendidos por nós mesmos. Em Espinosa, Deus é o Real.

Espinosa não é um ébrio de sonhos, não é um ébrio de utopias, não é um ébrio de imaginários . Espinosa é um ébrio do Real. Há no Real mais do que há nos sonhos, utopias e imaginários. Sua embriaguez não é um escapismo ou anestesia; ao contrário, sua embriaguez é uma intensificação de nossa potência de pensar e agir , sempre em alegria.

Para Roman, ler um autor não é descobri-lo, e sim descobrir um eu nosso ainda desconhecido. Não um eu idealizado ou imaginado, mas um eu como parte do Real, um eu cujo desejo tenha por objeto não fantasias, sonhos ou utopias, mas o próprio Real, para assim fazer-se real, pensando, sentindo e , sobretudo, agindo. Sem  faltar-se a si mesmo, de Real preencher-se,  em alegria.

Em grego, “embriaguez” é “bacchus”, termo que também se refere a Dioniso, uma vez que a embriaguez dionísica é o efeito de uma tal intensificação da vida, quando  ela  se torna a mesma coisa que arte.

O poeta Baudelaire dizia: “É preciso embriagar-se. De quê? De vinho virtude ou poesia, a escolher. Mas embriaguem-se!”

Espinosa escolheu embriagar-se de Real. Não é uma embriaguez motivada por fantasias do imaginário; além disso, é uma embriaguez que aponta para um fora do simbólico: um fora que é, no entanto, imanente ao desejo.

Poeticamente, Romain descreve essa embriaguez em uma imagem belíssima: o Real é o Sol Eterno  cuja luz potente preenche a taça dos olhos de Espinosa que , como farol a desfazer toda forma de treva,  brindando à vida  irradia lucidez. Eu faria apenas um acréscimo: há em Espinosa não apenas a luz do sol apolínia, brilha nele igualmente a multitudo das luzes estelares dionisíacas. São todas essas luzes, diurnas e noturnas, apolínias e dionisíacas, que fazem dele um lúcido: “aquele que expressa lux ( luz)”.

Em Espinosa, a eternidade não é uma realidade fria e abstrata. Tudo o que é eterno frui sua existência infinitamente. Em latim, “fruir” é um verbo do qual vem “fruto”, aquilo que se saboreia e usufrui. Esse fruir de si enquanto modo daquilo que é eterno não se faz sem embriaguez que se desfruta, enquanto dura o tempo.

 

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Considero a expressão “ébrio de Real” mais adequada do que “ébrio de Deus”, que é a maneira como o poeta Novalis se refere a Espinosa ( e que Diogo Pires, em sua Introdução à Ética de Espinosa, também emprega para se referir ao filósofo).  É o Real que faz de Espinosa um lúcido, isto é, aquele que expressa luz : em Espinosa,  a lucidez serve de antídoto ante  toda forma de obscuridade que instrumentaliza a ideia de Deus no sentido da superstição  do poder teológico-político. 

 

Referência :





[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

curso sobre Espinosa

 

Tema da aula: “A filosofia de Espinosa”.

Ministrante: Elton Luiz Leite de Souza.

 

 

- Apresentação

Segundo Gilles Deleuze, “Espinosa é  o mais filósofo dos filósofos (...), mas ao mesmo tempo aquele que mais se dirige aos não-filósofos e que mais solicita uma compreensão não filosófica. É por essa razão que rigorosamente todo mundo é capaz de ler Espinosa, e de extrair dele grandes emoções, ou de renovar completamente sua percepção , mesmo não entendendo com profundidade os conceitos espinosianos.”( Conversações, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, págs 204/205).

Nessa afirmação de Deleuze estão pressupostas muitas questões que explicam a necessidade de uma “compreensão não filosófica” da filosofia de Espinosa. Queremos destacar uma dessas questões : o afeto. A plena  compreensão das ideias  de Espinosa não pede apenas a apreensão  teórica de  conceitos, ela requer  também a experiência com os afetos: qual a natureza deles? Por qual razão o Desejo ocupa um lugar central quando Espinosa  fala dos afetos? Quais relações existem entre o Desejo e outros afetos como  Alegria,  Tristeza,  Amor e  Ódio? Quais implicações existem entre os afetos e o corpo? Por que essa temática não é apenas conceitual-filosófica mas também existencial, política e clínica?

São muitas questões, sem dúvida. E outras ainda poderiam ser formuladas. Várias  são as disciplinas que também se interessam por essa temática e suas implicações. As respostas possíveis a essas questões vão além de um curso, pois elas envolvem a vida , ou melhor, modos de vida. Sem perder isso de vista, será nosso desejo fornecer, ainda que de forma ampla,  algumas repostas a essas questões  que Espinosa nos endereça e , vencendo o tempo, se apresentam ainda como atuais e necessárias.

 

 

- Referências

CHANTAL, Jaquet. A unidade do corpo e da mente – Afetos, ações e paixões em Espinosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Minuit, 1968.

­­­­___________.Conversações.Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

___________. “Spinoza e as três ‘Éticas’”, Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. ___________. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

___________. Cursos sobre Espinosa. Fortaleza: EdUECE, 2009.

ESPINOSA, Bento. Oeuvres complètes. Paris: Pléiade, 1954.

__________.Ética (edição bilíngue), trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013 (3ª edição).

__________. Ética ( edição bilingue), tradução, Introdução e notas de Diogo Pires. São Paulo: Ed. 34 , 2024.

FERREIRA, Maria Luísa Ribeiro. Uma suprema alegria: escritos sobre Espinosa. Coimbra: Quarteto, 2003.

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Ethique de Spinoza. Paris: PUF, 1994.

MATHERON, Alexandre. “La vie éternelle et le corps selon Spinoza”. In: Revue Philosophique – Spinoza: la cinquième partie de l’éthique, nº 1 – janvier-mars/1994, 27-40. Paris: PUF.

MISRAHI, Robert. Le Corps et l'esprit dans la philosophie de Spinoza. Paris:Synthélabo, 1998.

NEGRI, Antonio. L’anomalie sauvage. Paris: PUF, 1982.

  __________. Spinoza subversif: Variations (in)actuelles. Paris : Ed. Kimé, 2002.

RAMOND, Charles. Vocabulário de Espinosa. São Paulo: Martins fontes, 2010.

ROLLAND, Romain. O clarão de Espinosa. São Paulo: N-1, 2020.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Filosofia do direito, ética e justiça. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2007.

__________. Spinoza, Deleuze e Guattari: o desejo como metamorfose. Revista Alegrar, nº 10, dez 2012.

 __________. Spinoza e o sentido. Revista Conatus, vol 7, nº 14, dez 2013.

__________.Spinoza: a imaginação e sua atividade de envolver. Revista Trágica : estudos de filosofia da imanência.Rio de Janeiro, V 10, nº 3, pp 28-57, 2017.

YOVEL, Yirmiyahu. Espinosa e outros hereges. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993.



PLANO DE AULA

Profº Elton Luiz leite de Souza

 

Tema da Aula: “Uma introdução a Espinosa.”

 


E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

( trecho do poema “Espinosa”, de Machado de Assis)

 

Lavra um árduo cristal: o infinito

Mapa do Ser que é todas as estrelas.

( trecho do poema “Spinoza”, de Jorge L. Borges)

 

 

1. Espinosa: “O ébrio do Real” ( Romain Rolland).

2. Afeto e Ideia: os gêneros de conhecimento como modos de vida.

3. A filosofia de Espinosa como “clínica” dos Afetos.

 

Textos que servirão de base para aula:

- Ética, de Espinosa.

São estas as passagens da Ética que servirão mais diretamente de base para a aula:

 Primeira Parte: “Definições”; “Apêndice”.

 Segunda Parte : “Definições”; Axioma 3; Proposição 1 ; Proposição 2 e escólio; Proposição 40 e escólio.

Terceira  Parte : “Prefácio”; Definição 3; Postulado 1; escólio da Proposição 2 ( “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”); Proposição 56 e escólio; “Definição dos Afetos”; “Definição Geral dos Afetos” ( sobretudo a “Explicação”).

Quarta Parte: “Prefácio”; Proposição 1 e escólio; Proposição 7; “Apêndice”.

Quinta Parte: “Prefácio”; Proposição 3 e corolário; Proposição 4 , corolário e escólio; Proposição 6 e escólio; Proposição 8; Proposição 9; Proposição 10 e escólio; da Proposição 15 à 20 : sobre o Amor pelo Absolutamente Infinito como dimensão “clínica”; Proposição 24 : sobre as coisas singulares e suas relações com o Infinito; da Proposição 25 à 33: o terceiro gênero de conhecimento como modo de vida e o “Amor Intelectual de Deus” ( “Amor Dei Intellectualis”); da Proposição 36 à 42: o Terceiro Gênero e sua relação com a potencialização “clinica” da mente e do corpo.

Observação : a Ética é um texto composto de partes diferentes, com ritmos e propósitos distintos. Recomendo sempre enfatizar a leitura sobretudo dos Prefácios, Apêndices e Escólios, pois nessas partes Espinosa assume uma escrita mais acessível , anunciando , retomando e explicando os temas expostos sob o aparato formal geométrico.

 

- Espinosa – filosofia prática, de Gilles Deleuze ( Capítulo 4: “Index dos principais conceitos da Ética ).

- Cursos sobre Spinoza , de Gilles Deleuze ( “O Afeto e a Ideia”, pág. 25 e seguintes).

- Páginas 16 e 17 da Introdução escrita por Diogo Pires Aurélio à nova  edição bilingue da Ética lançada neste ano ( 2024) pela Editora 34.

 

Obs: além dessas referências, a aula também terá por base aulas escritas produzidas pelo prof. Elton Luiz ( e que serão enviadas para a coordenação do curso).

 

Para maiores informações :

https://www.assemblage.art.br/esquizoan%C3%A1lise-2024-nova


 

sábado, 1 de junho de 2024

Lucrécio & Espinosa

 

Uma das ideias mais bonitas de Espinosa também é uma das mais difíceis de ser posta em prática. Em Espinosa, as ideias nada são se não forem postas em prática. É por isso que sua obra principal se chama exatamente “Ética”.

A ideia é a seguinte: “Não se vence o ódio com ódio, não se vence a tristeza com tristeza. Tampouco ódio e tristeza podem ser vencidos apenas com racionalizações, ou seja, com palavras. Só um afeto tem força para vencer um outro afeto que lhe seja contrário. Assim, somente o amor tem força para derrotar o ódio; apenas a alegria tem potência para vencer a tristeza. Não se trata, claro, de termos amor ao tirano  que nos provoca ódio, e sim de gestarmos em nós  amor à dignidade e à justiça, para assim reunirmos força e coragem para vencermos as tiranias. Não se trata, claro,  de termos amor à doença que nos entristece , e sim cultivarmos amor à saúde, inclusive a saúde da sociedade plural e democrática, para assim termos forças para lutarmos contra toda forma de enfermidade que entristece e despotencializa a vida.” 

Ontem à noite eu conversava com um amigo que está muito triste, recluso em casa e dentro de si mesmo, assim ficando por   pensar nas “espurcícias do mundo”, conforme diz o poeta Manoel de Barros.

Hoje bem cedinho eu estava lendo o poeta-filósofo Lucrécio. Parece até que ele havia ouvido minha conversa com meu amigo e , solidário, nos oferecia uma resposta sob a forma de filosofia em versos, como se fosse mão estendida. Lucrécio diz mais ou menos o seguinte:

“Não há aurora que se siga à noite, nem noite que se siga à aurora, sem que escutemos, ao mesmo tempo, o choro da criança que nasce para a novidade do mundo e o choro triste  de alguém  que  parece desistir do mundo. Os dois choros, o da alegria e o da tristeza, soam juntos . Se o choro da tristeza nos parece soar  mais forte , é preciso partejar também  em nós ouvidos que ouçam o choro das coisas que nascem.  Quem apenas tem ouvidos para ouvir o choro da tristeza que mortifica, torna-se surdo às coisas que nascem; mas naquele que são partejados  ouvidos para ouvir as coisas que nascem, desse ouvir também nascem igualmente  palavras e ações para lutar não contra os tristes, mas contra as causas da tristeza.”

Dizem que Espinosa sempre mantinha o livro de Lucrécio aberto sobre sua mesa, como uma farmácia na qual podia encontrar   o remédio certo e raro.

Segundo Lucrécio, filosofar e poetar nada são se não forem, antes de tudo, o partejar de ouvidos que ouçam o choro de tudo o que nasce,  e que , como um recém-nascido,  requer a perseverança constante de nossos cuidados.


"Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois, proposição 49, escólio)






quinta-feira, 30 de maio de 2024

Os dois Manoeis

 

O poeta Manoel de Barros  dizia ser  “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza   “letral”. Sua poesia nos mostra que o Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, continua vivo e faz viver quem o lê.

 Talvez   a saudade que sentimos do primeiro Manoel   possa ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive no coração de seus versos,  onde está cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve Manoel.

O “letral” não é a letra morta no papel. O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”, explica-se o poeta. 

O primeiro Manoel nos deixou com 97 anos. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem? Talvez não se possa medir essa existência em passagem de tempo. Pois o Manoel-letral é só nascimento e  “afloramento de falas”, incluindo as falas  múltiplas  e heterogêneas dos seres diferentes que   o poder do “mesmal”  tenta calar.

Muitos desejam conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, confessa o poeta.

 A imagem do primeiro Manoel fixou-se no velhinho sorridente e simpático. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer dele? Difícil fixar uma.... Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse Manoel-letral que vive em sua poesia.

De minha parte, o Manoel-letral  ora é  um passarinho, ora é um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”, diz Manoel. Esse menino, afirma o poeta, é  “a criança que me escreve”. 

O tal menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa”.  É esse devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas de livros.

 “Não, não há criação triste”, dizia Deleuze reproduzindo uma lição que aprendeu de Espinosa. As paixões tristes , frutos dos “maus encontros” que nos tiranizam, diminuem nossa potência de existir; já as paixões alegres nascidas de bons encontros  aumentam nossa potência de existir. É sempre a existência o critério para distinguir  alegria e tristeza, potência e impotência, liberdade e servidão.

O Manoel que viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o Manoel-letral não é fruto de tristezas-impotências, pois mesmo estas são transfiguradas pela criação poética e se tornam  poesia, isto é, canto da palavra que cura e liberta:  “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”, ensina Manoel.

 Artífice de bons encontros potencializadores,  Manoel-letral conquistou mais do que muitos anos de vida, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :

 

“O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro

botando ponto no final da frase.”

 


 


“Eu sou dois seres.

O primeiro fruto do amor de João e Alice.

O segundo é letral.

               (...)

O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.

O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.

E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.”

(Manoel de Barros, poema “Os dois”, livro Poemas rupestres, p. 45)



 

Obs: este texto aqui do blog é parte de um artigo que escrevi ( a convite do amigo, poeta e escritor Paulo Vasconcelos). Quem quiser saber onde se encontram em Manoel os versos que cito aqui, é só conferir no artigo:

http://saopauloreview.com.br/manoel-de-barros-em-um-ensaio-e-uma-homenagem/



terça-feira, 28 de maio de 2024

Apetite e Desejo em Espinosa

 

O desejo se origina do que Espinosa chama de apetite. O apetite concerne tanto ao corpo quanto à mente, ao passo que a vontade diz respeito apenas à mente. O desejo nada mais é do que o apetite consciente dele mesmo.

O apetite consciente de si mesmo já não se deixa determinar pelas coisas que não são ele mesmo, coisas que lhe estão fora, como bens, dinheiro, riqueza, fama. Quando se torna consciente de si mesmo, o apetite  tornado desejo  se liberta da ideia de que, para alcançar a felicidade,  precise possuir , ter, comprar , ostentar e acumular coisas ,  ou rivalizar e competir para tê-las como dono exclusivo delas.

Mas o apetite consciente de si mesmo não significa a mesma coisa que ter consciência do apetite. É preciso termos cuido com o emprego das palavras para não projetarmos em Espinosa questões que não são dele. Espinosa não está dizendo que o apetite dependa da consciência reflexiva de um sujeito moral. Ele afirma , ao contrário, que o desejo é o apetite consciente dele mesmo, e desse ser consciente dele mesmo participa não apenas a mente , participa também o corpo. Esse estar consciente não é uma reflexão, uma “interiorização” moralizante, mas uma ação do apetite pensando ele mesmo, sua singularização e potência, enfim, a sua conquista ética, que é a conquista de si mesmo.

Quando o apetite se torna consciente dele mesmo, não é apenas o apetite que se torna consciente de si mesmo, mas todo o nosso ser: nós mesmos nos tornamos conscientes de nós mesmos na medida em que exercemos potentemente o  desejo , isto é, na medida em  que nos tornamos causa, para nós mesmos e para os outros,  mais de alegrias do que de tristezas, mais de amores do que de ódios, mais de ações do que de reações.

Originariamente, a  palavra “apetite” tem o sentido de “pedir” , “ir em direção a”. Se o ato de pedir não for consciente de si mesmo, se ele não se pensar, desse pedir pode nascer um implorar , um mendigar, enfim, um padecer dependente , servo, reativamente passivo. Se o ato de pedir não for consciente de si mesmo, ele pode ser atraído e ir em direção a algo que o fará perder-se de si mesmo. E quando o apetite não é consciente de si mesmo, disso se valem os pregadores da culpa e da "falta" com  seus discursos teológicos-moralizantes que demonizam o desejo. 

Portanto, é  assim que o apetite devém desejo: pedindo, antes de tudo, a si mesmo:  indo em direção a si mesmo, à sua potência. Nesse sentido originário, ser cons-ciente é ter ciência e pensar  sua própria existência.  




 


domingo, 26 de maio de 2024

Espinosa e a medicina mentis

 

Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que  revela a admiração que nutria por Espinosa, a despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault,  em Espinosa fazer filosofia é inseparável da produção de uma vida filosófica.  Produzir um modo de vida filosófico, este é o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente. Foucault argumenta que  essa conduta muda radicalmente a partir de Leibniz,  não obstante Espinosa e Leibniz  serem contemporâneos ( Espinosa era apenas um pouco mais velho que Leibniz).A partir de Leibniz, fazer filosofia será identificado a escrever livros, artigos; dar aula na academia, fazer palestras, acumular Títulos. Em Espinosa, a vida filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma. Produzir uma vida filosófica requer não apenas amor à Verdade, requer  sobretudo coragem .E disto a própria vida de Espinosa  dá o testemunho. Decerto que não faltou amor à Verdade a Sócrates ou Platão, e nisto Leibniz os segue. Mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a Verdade pede. Há uma dimensão clínica nessa Verdade, pois toda cura começa na coragem. Coragem não para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com  a saúde (salut).

Não se trata , portanto, da noção de “verdade” dogmática ou associada à clássica definição da adequação entre a ideia e seu objeto. A verdade de que fala Foucault é adequação sem dúvida, mas adequação entre o que pensamos e nossa conduta. Não é uma verdade enquanto forma , é uma verdade enquanto potência: um devir-verdade que nada tem a ver com as “Verdades Dogmáticas” sem devir.

Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para instituir uma medicina da alma. Parece absurdo que o homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina mentis, uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem apenas pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer  o curandorismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo.Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse vir tal salut.Procedendo assim, a alma está sempre a depender de outra coisa para ser si mesma e exercer sua virtude, que é a compreensão, o pensar.Todavia, não há como a alma delegar essa virtude e permanecer alma, assim como não há como ela, em vida, delegar sua existência a outra coisa e ainda permanecer viva. Na verdade, a virtude de pensar não pode ser delegada, pois ela constitui a existência da alma. No entanto, ela pode ser enfraquecida, entristecida, e isto é o que ocorre quando a alma adoece.

Ao perceber que o corpo está doente, a alma age visando a cura dele produzindo um método. Se for a alma a doente, o inverso não se aplica, pois o corpo é incapaz de perceber uma doença na alma.Se o corpo está bem alimentado, saudável, ele está na plena posse de sua virtude, que é agir. Perceber é uma virtude que depende da alma, e não do corpo.Mas como alma e corpo são um só, é abstrata a ideia de que um possa estar são e o outro doente. Esta hipótese foi aventada apenas para introduzir a seguinte questão: se a alma estiver doente, impotente, como pode ela perceber em si mesma tal impotência?Como poderia ela, estando doente, isto é, encontrando-se incapacitada para compreender, compreender justamente que ela não compreende?Como poderia ela emitir um juízo acerca de si mesma se ela se acha incapacitada para emitir juízos?Se ela se encontra fora dela mesma, e sua casa é a compreensão, como pode ela entrar nela mesma para, exercendo sua virtude, buscar sua própria cura?

A cura do corpo depende da alma, sem dúvida. Mas a cura da alma depende dela mesma. No entanto, se toda cura depende de um método, como pode a alma estabelecer um para si mesma se ela ignora que ignora?Assim, e antes de tudo, é preciso que a alma conheça que está doente. Conhecer não é reconhecer. O reconhecer é uma passividade, ele é a aceitação de um juízo externo que outrem faz sobre nós mesmos, ao passo que o conhecer é uma atividade que só depende de nós mesmos, pois ele é a produção de um conhecimento apoiado em uma ideia adequada. Quando conhecemos que estamos doente, já não o estamos mais: já ultrapassamos a doença pelo esforço para compreendê-la. Quando conhecemos que estamos doentes na alma, é sempre a uma parte da alma que a doença se refere, e não à alma inteira. Na verdade, a  parte doente da alma é apenas a alma pelo avesso, alienada de si mesma. Do conhecimento da doença nasce um método, que é um esforço sobre si mesmo para adequar-se a si mesmo, à nossa ideia adequada. Esse esforço é a expressão de uma constância que só se torna contínua  quando nos colocamos de acordo conosco.

O método é um exercício sobre si: ele é uma medicina animi, ele é uma clínica. A verdadeira clínica não é luta contra a doença, mas potencialização da saúde.Somente quando não está mais pelo avesso é que nossa alma pode nos vestir e ser a ideia adequada de nós mesmos, ideia esta que nos dá coragem e firmeza.A clínica é a constituição de um modo de vida, de um pensar e de um agir adequados. "Método" significa: "caminho para".O método é um caminhar, um caminhar para. O método é um caminhar para nós mesmos, para a ideia adequada. Esta não é um fim que se coloca exterior ao caminhar, ela é a causa eficiente dele. A ideia adequada é o martelo que produz o caminhar . Como toda ferramenta, é o uso que a aperfeiçoa, ao mesmo tempo que aperfeiçoa o agir do  artesão que a tem nas mãos.A nossa existência é um caminhar para a essência, um caminhar de acordo com a essência.Por isso, o método é uma conduta cuja causa é a essência que expressamos. O método é um caminhar para a essência, isto é, um estar de acordo com aquilo que não nos falta, mas que nos é necessário produzir como modo de vida.






sábado, 25 de maio de 2024

Van Gogh & Espinosa : singularidades...

 

Inspirando-se em Espinosa, o filósofo Deleuze distingue duas noções: indivíduo e singularidade. Indivíduo e singularidade, portanto, não são a mesma coisa.

Por exemplo, quando Van Gogh assinava  seus quadros, sua assinatura não se resumia apenas  ao nome próprio   escrito na tela. A “assinatura-Van Gogh” também são suas cores, o estilo  de suas pinceladas , seus tons, suas intensidades, ou seja, a assinatura-Van Gogh expressa uma multiplicidade de signos-ideias-afetos que Van Gogh criou, para assim conquistar uma forma de vida que nunca morre, vida essa  que se eternizou  nas  formas e cores de suas telas.

Inclusive, quando conhecemos bem essa assinatura-Van Gogh, somos capazes de reconhecer um quadro de Van Gogh de imediato, antes mesmo de lermos o nome “Van Gogh” escrito na tela.  

Enquanto o nome “Van Gogh” designa um indivíduo que viveu em determinado  lugar, em certa sociedade, durante um tempo específico que a história documenta e informa, a “assinatura-Van Gogh” expressa um acontecimento que mudou a própria arte, pela potência de vida  que esse acontecimento continha.

O indivíduo Van Gogh viveu uma vida de imensos sofrimentos, vida essa que ele pôs fim com um tiro no coração. Mas o tiro atingiu o coração do indivíduo, não o coração da singularidade-Van Gogh, pois esse coração  ainda pulsa  em sua arte.

Quando Espinosa terminou sua obra cujo título é “Ética”, ele não quis colocar seu nome nela. Espinosa viveu de modo tão autêntico , que pouco há nele de indivíduo-ego, pois ele foi   uma singularidade conectada amorosamente ao Infinito ( sem deixar de ser, quando preciso, combativo e  crítico ante os autoritarismos políticos de sua época).

A singularidade-Espinosa expressa tudo aquilo que o indivíduo Espinosa sentiu e pensou, mas que não cabia em sua vida individual, que não era   apenas de sua pessoa. É por isso que seu livro não contém apenas palavras,  nele também há percepções, ações, afetos , enfim, uma vida potentemente desperta para que despertemos também a nossa.

O nome “Espinosa” designa um indivíduo que foi excomungado, que tentaram calar e matar, que sofreu as maiores injúrias e ofensas que um indivíduo já sofreu. Mas isso não fez dele um   ressentido,  amargo ou conformado. Espinosa  nunca voltou atrás no que ensinava , jamais se vendeu ou se traiu.

Quando  lemos Espinosa, também aprendemos  como ele venceu aquelas injúrias e ignorâncias, e como  seu pensamento ainda nos é necessário nas lutas de hoje  contra as vilezas  dos seres cujos nomes nomeiam coisas inomináveis...

Espinosa diz que gostaria que quem lesse sua obra se sentisse como que “conduzido pela mão”. Isso me lembra a querida professora que me alfabetizou e , segurando/conduzindo  minha mão com afetuoso cuidado, me ensinou a assinar meu nome, singularizando-me.

Creio ser assim que também faz a mão ética de Espinosa conduzindo a mão do nosso pensamento : para aprendermos a assinar/criar   ações que , por mais simples e modestas que sejam, expressem uma conquista de potência,  emancipação e dignidade.


                                               ( “Estrada com cipreste e estrela”/ Van Gogh)



Ontem, o poeta Bob Dylan comemorou 83 anos:



quarta-feira, 22 de maio de 2024

A intuição em Espinosa

 

A filosofia estabeleceu alguns cânones para averiguar como as ideias se relacionam entre si, umas com as outras. O Deducionismo, por exemplo, acredita que uma ideia é sempre extraída de outra ideia. “Deduzir” significa “extrair”.Para que se possa extrair uma ideia, é preciso que uma primeira ideia seja dada como verdadeira e fundamento da dedução. Se esta ideia também foi extraída de outra, então ela não é verdadeiramente a primeira, ela é derivada de uma outra. É por isso que o processo não pode ir ao infinito: é preciso  uma primeira Ideia como ponto fundante de toda a cadeia dedutiva, sendo que esta primeira ideia, da qual todas são extraídas, não é extraída de nenhuma outra que lhe seja mais eminente ou anterior ( do ponto de vista lógico e ontológico).Esta primeira Ideia não foi produzida ou criada: ela existe em si, idêntica a si mesma.

O Associacionismo , diferentemente, defende que toda ideia é uma associação de ideias, umas exteriores às outras. Toda ideia é como uma palavra, cujas letras são outras ideias. Por que as ideias se associam? Elas se associam pelas mesmas razões que levam a se associar  tudo o que se associa, incluindo os homens: existem Princípios que presidem a associação das ideias. O Princípio de Identidade, por exemplo, é um desses Princípios. Todavia, esses Princípios não produzem as ideias, eles apenas fornecem as regras mediante as quais as ideias se associam. As ideias compostas nascem das ideias simples, tal como a palavra que nasce das letras. Mas de onde vêm as ideias simples? A resposta do associacionismo, embora conhecida, nunca deixa de ser desconcertante: as ideias simples vêm da sensação, e esta não é uma ideia e tampouco é um princípio. A ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida. As ideias pressupõem uma desintensificação das sensações . Somente algo não vem da experiência: o espírito. Todavia, não se deve confundir o espírito com o ego ou com o sujeito constituído, pois ego e sujeito  também são  uma ideia composta nascida de ideias simples enquanto sensações desintensificadas. O espírito é o que contempla/contrai a sensação. Da contemplação nasce a ideia e da contração emergem os princípios que regrarão as ideias, constituindo assim uma natureza humana com sua psicologia e regras de associação. Mas o espírito antecede a natureza humana , e expressa um processo onde ainda não estão separadas  sensação e mente. “Contrair” é, ao mesmo tempo, “unir” e adquirir um “hábito”. A noção de hábito implica a de uma repetição. O espírito é a diferença que contempla a repetição da matéria. Ao contemplar o que se repete, o espírito contrai , une, o que na natureza está separado. E é por esse mecanismo do hábito que o espírito se põe acima do  dado. O espírito não extrai a ideia da sensação, ele simplesmente a contempla/contrai, de tal maneira que a ideia nasce nele sem que ele a produza, uma vez que a ideia é o enfraquecimento daquilo que ele contempla. É preciso levar em conta que a sensação não é um objeto, ela é um processo; tampouco o espírito é um sujeito, ele também é  um processo. Assim, é desse processo sensação-espírito que toda ideia nasce, e desse processo não se pode separar aquele que contempla, o contemplado e a contemplação. É por isso que nesse nível  não há sujeito ou objeto, embora já exista espírito e matéria: esta é repetição e aquele é diferença que contempla esta repetição. A repetição do contemplado é inseparável do espírito que o contempla, de tal  maneira que a repetição ocorre numa região que não se pode definir como subjetiva ou objetiva, pois está aquém destas distinções.

Em Espinosa, as ideias sempre nascem de ideias. Sócrates definia a filosofia como maiêutica, isto é, como arte de  partejar ideias. Partejar é fazer nascer, trazer ao mundo, à vida. Contudo, para que uma ideia possa ser partejada, é preciso que ela tenha sido, antes, fecundada. Na Grécia, Fecundar era a característica que expressa  Eros, o Amor. Não por acaso, em Espinosa o Desejo recebe o nome de “cupiditas” : relativo a Cupido/Eros.  Antes de a  ideia poder ser  intuída, ela já está contida dentro de outra ideia, e esta dentro de outra, e esta ainda dentro de outra...de tal maneira que   todas estão dentro da Ideia de Deus que lhes é imanente, pois todas são expressões diferentes  dessa mesma Ideia Infinita: Amor Infinito cujo fecundar também é Infinito . 

Em Espinosa, é a intuição o procedimento de unir cada ideia singular à Ideia da qual todas são a expressão. E quanto mais adequadamente cada ideia singular expressa a Ideia Infinita que lhe fecundou , mais cada uma é adequadamente a ideia do corpo ao qual ela está ligada, e mais o desejo , concernindo ao espírito e ao corpo, se torna potência de singularização ética, política e clínica.