sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Literatura e filosofia: Proust e o aprendizado.

 

“Em busca do tempo perdido” fala do mais necessário dos aprendizados, um aprendizado tão necessário quanto difícil. Não é um aprendizado a ser feito por crianças a serem educadas , tampouco por  adultos que pouco estudaram.

O aprendizado de que trata a obra  deve ser buscado por  alguém que sabe usar as palavras e se formou aprendendo  teorias, mas que se dá conta que as teorias já conhecidas e sabidas às vezes já não dizem nada, nada ensinam.

Esse aprendizado , portanto, não é sobre palavras , ele é um aprendizado sobre o tempo. Mas não se trata do tempo preso na gaiola  abstrata  do relógio , e sim do tempo concreto ,  duração  intensiva  da vida e do mundo.   “Perdemos o tempo”  mais do que o vivemos, enquanto ignorarmos seu aprendizado. 

Esse aprendizado não é comandado pela Inteligência e seus Conceitos, mas pelos signos. Em Proust, signos não são apenas as palavras. As notas de uma música, um perfume, um gosto que se desprende de um simples biscoito, podem ser um signo. Esses signos não representam uma realidade exterior , eles expressam algo que neles está ausente, como os “signos mundanos”, ou que neles está  enrolado  como “pequenas almas” ou “Essência”, como os "signos da Arte".

O primeiro aprendizado vem acompanhado da angústia em perceber que o “tempo que se perde” somente sabemos dele depois que ele passa : o “mesmal”[1] do viver resignado nos faz perder presentemente o tempo, sem disso nos darmos conta. Esse aprendizado tem por suporte os “signos mundanos”: signos vazios, dissimulados, “máscaras”...

O segundo aprendizado pode vir  das relações afetivas, enquanto  projetos em comum de futuro. Quando esses projetos de futuro comum malogram e não vão em frente, tornam-se tempo perdido que , apesar de passado, ainda pesam no presente. Essa vivência  do “tempo perdido” não se faz sem decepção e dor. É por isso que o caminho da aprendizagem pode ser , no seu início, doloroso. Porém, os signos amorosos são ainda reféns de “associações subjetivas”. O ciúme, por exemplo, se mantém na subjetividade associando ideias, mesmo que equivocadas e delirantes. O associacionismo  de ideias subjetivas impede que se capte a Essência  que está envolvida nos próprios signos.

Até que pode advir um terceiro aprendizado : o do “tempo que se redescobre”. Aqui quem nos auxilia é  uma memória artista e clínica . Essa memória pode nos ensinar  que no passado vivido havia realidades  que  não vimos, talvez porque nos cegassem o ciúme , a insegurança ou o desejo de posse.  No seio do tempo perdido a memória não ressentida redescobre lição nova. Não podemos mudar o passado, porém podemos evitar que ele seja um peso para o nosso presente. Aqui , o aprendizado tem por suporte os signos enquanto qualidade que os objetos portam, como o sabor que o biscoito liberta. Mas esse tipo de signo ainda possui uma certa opacidade que impede a plena expressão do sentido ou essência que se enrola nos signos.

A última etapa da aprendizagem é o “tempo redescoberto”. Esse tempo é redescoberto aqui e agora, e não no passado. Ele não é futuro planejado , ele é o amanhã criado a partir de agora, como antídoto à perda presente do tempo  e libertação do tempo que passou .

No sentido bem amplo da palavra, e dito de maneira simples, o tempo redescoberto é a descoberta da arte em seu sentido existencial, enquanto potência (re)criadora da própria vida, pessoal e coletiva.

O tempo redescoberto nos ensina que redescobrir o tempo é redescobrir a nós mesmos, pois no tempo que se perde e no tempo perdido somos nós mesmos que nos perdemos. Não é a memória o agente desse aprendizado, mas o próprio Pensamento. Os signos da arte não são opacos, eles são diáfanos: é diáfana a tinta que produz o percepto-girassol, é diáfana a palavra literária-poética na qual uma Essência, enfim, se desenrola e expressa. Sobretudo, é em nós mesmos que o aprendizado se potencializa, quando aprendemos que o “logos” do sujeito, seu ego, aprisionavam, tornavam cativa, a nossa própria Essência singular. 

Em Proust, porém, a Essência não é uma realidade etérea e transcendente  vivendo fora do espaço e do tempo, como as Essências platônicas.  A Essência é uma Diferença, uma Perspectiva. Não uma perspectiva sobre o mundo, mas Perspectiva da qual nasce um mundo, um mundo nunca antes visto. Como ensina Manoel de Barros em sua original Perspectiva: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”.

Tempo que se perde , tempo perdido , tempo que se redescobre e tempo redescoberto : esse é o caminho do aprendizado cujo meio são os signos, e tem por mestre  o tempo.

O filósofo Gilles Deleuze assim resume a lição mais importante desse aprendizado: "O aprender vem antes do ensinar.”



[1] “Mesmal” é uma expressão do poeta Manoel de Barros. O “mesmal” é a antipoesia.






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