sábado, 16 de novembro de 2024

Os dois "manoéis"

 

O poeta Manoel de Barros dizia que havia dois “manoéis”: o Manoel  feito de corpo e alma, e que viveu  amizades, alegrias, amores, esperanças...Mas que igualmente conheceu  preocupações, tristezas, angústias, decepções... Enfim, esse primeiro  Manoel viveu na vida  afetos e situações que a maioria de nós também já viveu.

Mas  há ainda o “Manoel-letral”. O Manoel-letral é aquele para o qual “a palavra abriu o roupão para ele, e o deixou sê-la.”

O Manoel-letral é pura alma cujo corpo se tornou o corpo da palavra ,  para que a palavra escrita por ele  seja mais do que palavra: seja também vida metamorfoseada em poesia, para assim fazer parte da nossa vida e potencializá-la.

No último dia 13, fez 10 anos que o primeiro Manoel nos deixou. Talvez   a saudade que sentimos do primeiro Manoel   possa ser minorada pelo encontro com o Manoel-letral  que vive no coração de seus versos,  onde está cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve Manoel.

Para reencontrar Manoel , reli  hoje pela manhã  o poema “O guardador de águas”. No poema , Manoel  descreve o seguinte acontecimento ( que aqui interpreto) :

Sob um monturo formado por  restos de folhas amarelas  que já foram verdejantes na primavera, de cacos de vidro que já foram garrafa de vinho a brindar um Ano Novo e de farrapos desbotados que já foram trajes  de festa , sob tal monturo que a natureza recolheu sem lamentar-se pelo que já foi e passou , uma semente que ali estava sufocada despertou, pois furou a noite do monturo um raio de sol que ali entrou, transformando o monturo de túmulo em casulo.

"Poeta é ser que vê semente germinar", ensina Manoel.  Da semente libertou-se um pequeno caule que se enroscou no raio de sol e por ele foi subindo. À medida que subia, do caule nasceu um broto, depois uma folha tateante,  como se fosse mão escavando.

Uma linha de fuga então  foi-se desenhando, na força de uma vida nova a transpassar  o passado de coisas mortas.

Partejando a si mesmo e inventando uma saída, nasceu do monturo um reluzente lírio.

 



 

Trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna:



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