O poeta Manoel
de Barros dizia que havia dois “manoéis”: o Manoel feito de corpo e alma, e que viveu amizades, alegrias, amores, esperanças...Mas
que igualmente conheceu preocupações,
tristezas, angústias, decepções... Enfim, esse primeiro Manoel viveu na vida afetos e situações que a maioria de nós também
já viveu.
Mas há ainda o “Manoel-letral”. O Manoel-letral é
aquele para o qual “a palavra abriu o roupão para ele, e o deixou sê-la.”
O Manoel-letral é
pura alma cujo corpo se tornou o corpo da palavra , para que a palavra escrita por ele seja mais do que palavra: seja também vida
metamorfoseada em poesia, para assim fazer parte da nossa vida e
potencializá-la.
No último dia
13, fez 10 anos que o primeiro Manoel nos deixou. Talvez a
saudade que sentimos do primeiro Manoel possa ser minorada
pelo encontro com o Manoel-letral que
vive no coração de seus versos, onde está cada vez mais vivo, sempre
mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve
Manoel.
Para reencontrar
Manoel , reli hoje pela manhã o poema “O guardador de águas”. No poema , Manoel
descreve o seguinte acontecimento ( que
aqui interpreto) :
Sob um monturo formado
por restos de folhas amarelas que já foram verdejantes na primavera, de
cacos de vidro que já foram garrafa de vinho a brindar um Ano Novo e de
farrapos desbotados que já foram trajes de festa , sob tal monturo que a natureza
recolheu sem lamentar-se pelo que já foi e passou , uma semente que ali estava
sufocada despertou, pois furou a noite do monturo um raio de sol que ali entrou,
transformando o monturo de túmulo em casulo.
"Poeta é
ser que vê semente germinar", ensina Manoel. Da semente libertou-se um pequeno caule que se
enroscou no raio de sol e por ele foi subindo. À medida que subia, do caule
nasceu um broto, depois uma folha tateante, como se fosse mão escavando.
Uma linha de
fuga então foi-se desenhando, na força
de uma vida nova a transpassar o passado
de coisas mortas.
Partejando a si
mesmo e inventando uma saída, nasceu do monturo um reluzente lírio.
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