Na mitologia, as Graças
eram três irmãs que nunca se separavam. Delas vêm “gratidão” e “gratuito”. As
outras divindades se tornavam ainda mais potentes e generosas quando buscavam a
companhia das Graças.
Quando Atena, a deusa da
sabedoria , andava na companhia das Graças, o conhecimento que vinha dela não instruía
apenas teoricamente , também
deixava quem aprendia em graça,
aumentando a potência da vida.
Eros também buscava a
companhia das Graças quando queria que o amor que ele dava fosse também um
estado de graça: afeto que se dá e recebe , sem cobranças.
E quando os deuses
queriam saber quem entre os seres humanos era grato, eles ofereciam seus dons
junto com as Graças, e assim sabiam quem, aos recebê-los, ficava agradecido .
Pois quem é agradecido é confiável, nada tendo de in-grato.
As Graças não são
exatamente a alegria ou a felicidade, pois elas vêm antes desses estados, e
muitas vezes são as Graças que nos amparam nos momentos de tristeza e
infelicidade.
As Graças são o contrário
das Moiras, que também eram três irmãs. Enquanto as Moiras querem nos impor um
Destino férreo que se paga com o preço da m0rte, as Graças ofertam mais vida de graça, mesmo quando nos julgavam
vencidos e m0rtos. E por esse sopro de vida a mais as Graças nada cobram,
apenas esperam que nos tornemos gratos. Pois daquilo que se
recebe de graça ninguém é o dono ou proprietário: o que se recebe das Graças é
para ser partilhado.
Certa vez, Orfeu acordou
de manhã e percebeu que Eurídice, seu par, já estava desperta. Ela estava
diante de uma penteadeira penteando-se, enquanto cantarolava baixinho uma
canção. Ela não cantava a canção inteira, apenas o ritornelo, o refrão.
De repente, Eurídice viu,
pelo espelho, a expressão de Orfeu a
olhá-la. Admirado, parecia que o poeta via uma obra de arte a qual não faltava
nada.
Eurídice perguntou: “O que foi!?” E o poeta pediu: “Não pare, faça de novo o que
você estava fazendo!...” “Mas o que eu estava fazendo?” “Você estava se
olhando, mas sem se julgar ou comparar; você estava cantando sem razão ou
motivo, mas como fazia sentido o seu cantar!” “Ah, então era isso!? Farei de
novo...”
Porém, por mais que
Eurídice tentasse fazer de forma calculada o que fizera de maneira espontânea, ela não
conseguia repetir o que vivera de forma gratuita e com graça, sem
distanciamento com a vida.
Na Grécia , “Eurídice” é
um dos nomes da Alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Quando o poeta canta a vida em graça, é porque sua Alma-Eurídice foi despertada à vida pelas
próprias Graças.
O contrário da vida não é
a m0rte. O contrário da vida é uma existência sem-graça que atrai e produz
des-graças, como a quadrilha chefiada pelo inelegível, agora indiciada.
Como ensina Espinosa, “somente
os seres humanos livres e dignos são gratos uns aos outros.”
( imagem:
"As três Graças" / Delaunay)
“(...)uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...” (Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?)
Platão, por sua vez,
dizia que não se pode ser filósofo sem quatro aspectos conjugados : memória do
que não pode ser esquecido, desejo de aprender sempre mais, coragem para agir e
graça. Ou seja, a condição de filósofo requer graça, pois a ignorância , em suas diversas formas, é a
pior das des-graças...
"Graças à vida que me deu tanto
Me deu dois olhos que quando os abro
perfeito distinguo o preto do branco
E no alto céu seu fundo estrelado
E nas multidões o homem que eu amo
Graças à vida que me deu tanto
Me deu o ouvido que em todo seu alcance
Grava noite e dia grilos e canários
Martelos, turbinas, latidos, aguaceiros
E a voz tão terna de meu bem amado
Graças à vida que me deu tanto
Me deu o som e o abecedário
Com ele, as palavras que penso e declaro
Mãe, amigo, irmão
E luz iluminando a rota da alma do que estou amando
Graças à vida que me deu tanto
Me deu a marcha de meus pés cansados
Com eles andei cidades e poças d'água
Praias e desertos, montanhas e planícies
E a sua casa, sua rua e seu pátio
Graças à vida que me deu tanto
Me deu o coração que agita seu marco
Quando olho o fruto do cérebro humano
Quando olho o bom tão longe do mal
Quando olho o fundo de seus olhos claros
Graças à vida que me deu tanto
Me deu o riso e me deu o pranto
Assim eu distingo alegria de dor
Os dois materiais que formam meu canto
E o canto de vocês que é o mesmo canto
E o canto de todos que é meu próprio canto."
( "Gracias a la vida"/ Violeta Parra )
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