domingo, 24 de novembro de 2024

As Graças...

 

Na mitologia, as Graças eram três irmãs que nunca se separavam. Delas vêm “gratidão” e “gratuito”. As outras divindades se tornavam ainda mais potentes e generosas quando buscavam a companhia das Graças.

Quando Atena, a deusa da sabedoria , andava na companhia das Graças, o conhecimento que vinha dela não  instruía  apenas teoricamente , também  deixava quem aprendia  em graça, aumentando a potência da vida.

Eros também buscava a companhia das Graças quando queria que o amor que ele dava fosse também um estado de graça: afeto que se dá e recebe , sem cobranças.

E quando os deuses queriam saber quem entre os seres humanos era grato, eles ofereciam seus dons junto com as Graças, e assim sabiam quem, aos recebê-los, ficava agradecido . Pois quem é agradecido é confiável, nada tendo de in-grato.

As Graças não são exatamente a alegria ou a felicidade, pois elas vêm antes desses estados, e muitas vezes são as Graças que nos amparam nos momentos de tristeza e infelicidade.

As Graças são o contrário das Moiras, que também eram três irmãs. Enquanto as Moiras querem nos impor um Destino férreo que se paga com o preço da m0rte, as Graças ofertam mais  vida de graça, mesmo quando nos julgavam vencidos e m0rtos. E por esse sopro de vida a mais as Graças nada cobram, apenas esperam  que  nos tornemos gratos. Pois daquilo que se recebe de graça ninguém é o dono ou proprietário: o que se recebe das Graças é para ser partilhado.

Certa vez, Orfeu acordou de manhã e percebeu que Eurídice, seu par, já estava desperta. Ela estava diante de uma penteadeira penteando-se, enquanto cantarolava baixinho uma canção. Ela não cantava a canção inteira, apenas o ritornelo, o refrão.

De repente, Eurídice viu, pelo espelho,  a expressão de Orfeu a olhá-la. Admirado, parecia que o poeta via uma obra de arte a qual não faltava nada.

Eurídice  perguntou: “O que foi!?” E o  poeta pediu: “Não pare, faça de novo o que você estava fazendo!...” “Mas o que eu estava fazendo?” “Você estava se olhando, mas sem se julgar ou comparar; você estava cantando sem razão ou motivo, mas como fazia sentido o seu cantar!” “Ah, então era isso!? Farei de novo...”

Porém, por mais que Eurídice tentasse fazer de forma calculada  o que fizera de maneira espontânea, ela não conseguia repetir o que vivera de forma gratuita e com graça, sem distanciamento com a vida.

Na Grécia , “Eurídice” é um dos nomes da Alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Quando o poeta  canta a vida em graça, é porque  sua Alma-Eurídice foi despertada   à vida pelas  próprias  Graças. 

O contrário da vida não é a m0rte. O contrário da vida é uma existência sem-graça que atrai e produz des-graças, como a quadrilha chefiada pelo inelegível, agora  indiciada.

Como ensina Espinosa, “somente os seres humanos livres e dignos são gratos uns aos outros.”



                                        ( imagem: "As três Graças"  / Delaunay)

 


“(...)uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...” (Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?)


Platão, por sua vez, dizia que não se pode ser filósofo sem quatro aspectos conjugados : memória do que não pode ser esquecido, desejo de aprender sempre mais, coragem para agir e graça.  Ou seja,  a condição de filósofo  requer graça, pois  a ignorância , em suas diversas formas, é a pior das des-graças...




 

"Graças à vida que me deu tanto

Me deu dois olhos que quando os abro

perfeito distinguo o preto do branco

E no alto céu seu fundo estrelado

E nas multidões o homem que eu amo

 

Graças à vida que me deu tanto

Me deu o ouvido que em todo seu alcance

Grava noite e dia grilos e canários

Martelos, turbinas, latidos, aguaceiros

E a voz tão terna de meu bem amado

 

Graças à vida que me deu tanto

Me deu o som e o abecedário

Com ele, as palavras que penso e declaro

Mãe, amigo, irmão

E luz iluminando a rota da alma do que estou amando

 

Graças à vida que me deu tanto

Me deu a marcha de meus pés cansados

Com eles andei cidades e poças d'água

Praias e desertos, montanhas e planícies

E a sua casa, sua rua e seu pátio

 

Graças à vida que me deu tanto

Me deu o coração que agita seu marco

Quando olho o fruto do cérebro humano

Quando olho o bom tão longe do mal

Quando olho o fundo de seus olhos claros

 

Graças à vida que me deu tanto

Me deu o riso e me deu o pranto

Assim eu distingo alegria de dor

Os dois materiais que formam meu canto

E o canto de vocês que é o mesmo canto

E o canto de todos que é meu próprio canto."


( "Gracias a la vida"/ Violeta Parra )


 

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