O HÁBITO EM PROUST[1]
No belo livro que escreveu sobre Proust[2],
Beckett enfatiza um tema : o Hábito. “O
Hábito, afirma Beckett citando Proust, é uma segunda natureza.”[3]
Essa segunda natureza criada pelo Hábito, porém, gera uma ignorância acerca da
primeira. Não é apenas uma ignorância intelectual, não é uma ignorância por
carência de leitura de livros; antes de tudo , é uma ignorância que despotencializa
o existir, mesmo o existir de um
intelectual[4].
Beckett emprega uma passagem de Proust como fio condutor de sua
exposição: dominados pelo Hábito, somos como turistas cujo conhecimento das
paisagens que nunca vimos depende do papel desempenhado pelo guia turístico.
Assim, não conhecemos a paisagem diretamente com nossos próprios olhos e
sensibilidade, e sim mediante o crivo do guia turístico: ao invés de ser um
meio para conhecermos a paisagem nova, o guia turístico se torna um fim nele
mesmo .
Segundo Beckett, esse guia turístico é o Hábito: ele se interpõe entre a
realidade ( a “primeira natureza”) e nós mesmos, impedindo que experimentemos
com toda abertura e intensidade a realidade. O Hábito cria conceitos e
preconceitos que nos impedem de ver como a realidade de fato é em sua
singularidade, novidade e , também, estranheza.
Manoel de Barros dizia que o
estado mental contrário ao da poesia é
o “mesmal”. O “mesmal” é a venda do
Hábito que cega mais do que olhos: cega a mente.
Há uma famosa passagem de Proust na qual ele diz : “Mais importante do
que viajar para ver paisagens novas , é ver de forma nova a paisagem habitual.”
Para Proust, o Hábito é a antítese do ato criativo, e, por esse mesmo motivo, o
Hábito é o inimigo do pensamento.
O pensar só consegue ser despertado quebrando-se o mecanismo do Hábito. Nesse
sentido, pensar nunca é um hábito, pensar é uma atividade sempre extemporânea, disruptiva, inabitual . Em Proust, o pensar é despertado
junto com o sentir diante de situações que quebram o poder do Hábito (e da
memória voluntária que dele nasce e lhe está subordinada).
Nesse sentido proustiano, pensar é oposto do ato de “recognição” colocado
por Kant como pedra angular do processo de conhecimento. Segundo Kant, e aqui
abrevio bastante uma questão por demais complexa, todo ato de perceber envolve
uma forma e um conteúdo. A forma vem do sujeito, enquanto o conteúdo provém do
mundo. Por exemplo, quando percebemos um objeto diante de nós e afirmamos “Este
objeto é uma cadeira”, aplicamos sobre o objeto um conceito: o de “cadeira”. O
conceito é uma forma inerente ao entendimento do sujeito , conceito esse que
determina a imagem da cadeira individual que percebemos. Kant quer nos dizer
que, do ponto de vista lógico-gnosiológico, é o conceito, a forma, que vem primeiro ,
embora do ponto de vista da experiência empírica seja a cadeira individual que parece
vir antes. Quando percebemos um objeto, na verdade o inteligimos conforme um
conceito do entendimento que o determina como sendo isto ou aquilo, no espaço e
no tempo. Para Kant, enfim, conhecer é reconhecer: toda cognição é, em verdade,
uma re-cognição, um re-conhecimento[5].
A experiência de pensar em Proust afirma exatamente o contrário: pensar é
experimentar o nunca visto no seio mesmo daquilo que vemos e experimentamos: ver,
com olhos nunca vistos, o inabitual no coração do habitual.
Na Conclusão do livro O que é a
filosofia?, Deleuze e Guattari citam o escritor Lawrence que faz uma
afirmação que tem ecos proustianos: Lawrence diz que muitas vezes os homens
constroem um “guarda-sol” que colocam sobre a cabeça para se protegerem do “caos”[6].
Então, sob o guarda-sol eles desenham um
céu reconhecível e põem nele um Deus à
sua imagem e semelhança. Mas o artista é aquele que fura esse guarda-sol para
que um pouco da luz do caos possa entrar.
O Hábito e a Recognição são como
esse guarda-sol reativo : são padrões
que têm a pretensão de nos proteger de algo que o senso comum vê como ameaça ao
seu “mesmal”. E, de fato, há certo
perigo nessa realidade que não se reduz ao Hábito e à Recognição. Porém, afirma
Beckett , é nessa realidade estranha, desterritorializada e
desterritorializante , que não está em Marte ou alhures, mas aquém dos Hábitos e Recognições, é nessa realidade que
também se podem encontrar belezas, potências e (re)descobertas. Pois é desse
lugar inabitual que nasce o tempo. Não o tempo que passa e se torna “tempo
perdido”, não o tempo do relógio e seus utilitarismos
habituais; mas o tempo vital que somente
se vive ao modo de uma disruptura, de
uma (re)criação, enfim, de uma (re)descoberta: dele e de nós mesmos.
[1]
Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.
[3] Proust,
p. 21.
[4]
Para Proust, o artista-pensador não é um “intelectual”, isto é, um profissional
do mero intelecto.
[5]
De certa maneira, Kant retoma e modifica o tema da “reminiscência” em Platão ( “conhecer
é lembrar-se”, afirma o filósofo grego).
[6]
“Num texto violentamente poético, Lawrence descreve o que a poesia faz: os
homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual
traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o
artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar
um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que
aparece através da fenda (...).” ( O que é a filosofia ?, p. 261)
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