quinta-feira, 4 de julho de 2024

O hábito em Proust

 

                                                 O HÁBITO EM PROUST[1]

 

No belo livro que escreveu sobre Proust[2], Beckett enfatiza um tema  : o Hábito. “O Hábito, afirma Beckett citando Proust, é uma segunda natureza.”[3] Essa segunda natureza criada pelo Hábito, porém, gera uma ignorância acerca da primeira. Não é apenas uma ignorância intelectual, não é uma ignorância por carência de leitura de livros; antes de tudo , é uma ignorância que despotencializa o existir, mesmo o existir  de um intelectual[4].

Beckett emprega uma passagem de Proust como fio condutor de sua exposição: dominados pelo Hábito, somos como turistas cujo conhecimento das paisagens que nunca vimos depende do papel desempenhado pelo guia turístico. Assim, não conhecemos a paisagem diretamente com nossos próprios olhos e sensibilidade, e sim mediante o crivo do guia turístico: ao invés de ser um meio para conhecermos a paisagem nova, o guia turístico se torna um fim nele mesmo .

Segundo Beckett, esse guia turístico é o Hábito: ele se interpõe entre a realidade ( a “primeira natureza”) e nós mesmos, impedindo que experimentemos com toda abertura e intensidade a realidade. O Hábito cria conceitos e preconceitos que nos impedem de ver como a realidade de fato é em sua singularidade, novidade e , também, estranheza.

 Manoel de Barros dizia que o estado mental   contrário ao da poesia é o “mesmal”. O “mesmal”  é a venda do Hábito que cega mais do que olhos: cega a mente.

Há uma famosa passagem de Proust na qual ele diz : “Mais importante do que viajar para ver paisagens novas , é ver de forma nova a paisagem habitual.” Para Proust, o Hábito é a antítese do ato criativo, e, por esse mesmo motivo, o Hábito é o inimigo do pensamento.

O pensar só consegue ser despertado quebrando-se o mecanismo do Hábito. Nesse sentido, pensar nunca é um hábito, pensar é  uma atividade  sempre extemporânea, disruptiva,  inabitual . Em Proust, o pensar é despertado junto com o sentir diante de situações que quebram o poder do Hábito (e da memória voluntária que dele nasce e lhe está subordinada).

Nesse sentido proustiano, pensar é oposto do ato de “recognição” colocado por Kant como pedra angular do processo de conhecimento. Segundo Kant, e aqui abrevio bastante uma questão por demais complexa, todo ato de perceber envolve uma forma e um conteúdo. A forma vem do sujeito, enquanto o conteúdo provém do mundo. Por exemplo, quando percebemos um objeto diante de nós e afirmamos “Este objeto é uma cadeira”, aplicamos sobre o objeto um conceito: o de “cadeira”. O conceito é uma forma inerente ao entendimento do sujeito , conceito esse que determina a imagem da cadeira individual que percebemos. Kant quer nos dizer que, do ponto de vista lógico-gnosiológico,  é o conceito, a forma, que vem primeiro , embora do ponto de vista da experiência empírica seja a cadeira individual que parece vir antes. Quando percebemos um objeto, na verdade o inteligimos conforme um conceito do entendimento que o determina como sendo isto ou aquilo, no espaço e no tempo. Para Kant, enfim, conhecer é reconhecer: toda cognição é, em verdade, uma re-cognição, um re-conhecimento[5].

A experiência de pensar em Proust afirma exatamente o contrário: pensar é experimentar o nunca visto no seio mesmo daquilo que vemos e experimentamos: ver, com olhos nunca vistos, o inabitual no coração do habitual.

Na Conclusão do livro  O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari citam o escritor Lawrence que faz uma afirmação que tem ecos proustianos: Lawrence diz que muitas vezes os homens constroem um “guarda-sol” que colocam sobre a cabeça para se protegerem do “caos”[6]. Então, sob o guarda-sol  eles desenham um céu reconhecível  e põem nele um Deus à sua imagem e semelhança. Mas o artista é aquele que fura esse guarda-sol para que um pouco da luz do caos possa entrar.

 O Hábito e a Recognição são como esse guarda-sol  reativo : são padrões que têm a pretensão de nos proteger de algo que o senso comum vê como ameaça ao seu  “mesmal”. E, de fato, há certo perigo nessa realidade que não se reduz ao Hábito e à Recognição. Porém, afirma Beckett , é nessa realidade estranha, desterritorializada e desterritorializante , que não está em Marte ou alhures, mas aquém  dos Hábitos e Recognições, é nessa realidade que também se podem encontrar belezas, potências e (re)descobertas. Pois é desse lugar inabitual que nasce o tempo. Não o tempo que passa e se torna “tempo perdido”, não o tempo  do relógio e seus utilitarismos habituais;  mas o tempo vital que somente se vive  ao modo de uma disruptura, de uma (re)criação, enfim, de uma (re)descoberta: dele e de nós mesmos.



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

 [2] BECKETT, Samuel. Proust. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[3] Proust, p. 21.

[4] Para Proust, o artista-pensador não é um “intelectual”, isto é, um profissional do mero intelecto.

[5] De certa maneira, Kant retoma e modifica o tema da “reminiscência” em Platão ( “conhecer é lembrar-se”, afirma o filósofo grego).

[6] “Num texto violentamente poético, Lawrence descreve o que a poesia faz: os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda (...).” ( O que é a filosofia ?, p. 261)




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