sexta-feira, 12 de julho de 2024

"Nós, os bruxos..."

 

Certa vez , um antropólogo inglês visitou a tribo de um povo habitante da África. Ao entrar na habitação do pajé  da tribo , o antropólogo viu a seguinte cena:  havia uma máquina de escrever pendurada na parede como se fosse  um objeto artístico, um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros.

O antropólogo nada perguntou ou disse. De volta a Londres, o antropólogo consultou livros e tratados para ver se achava explicação teórica para a  ação subversiva do pajé .

 De repente, o antropólogo  olha para a parede de sua biblioteca e vê um arco e flecha pendurados como enfeite...Então, o acadêmico  compreendeu que o ato subversivo que o pajé fez explicava de forma criativa e crítica, mais do que toda teoria, o ato colonialista  que o próprio antropólogo fizera com o arco e flecha raptados da cultura originária.

Àquela época, por volta de 1950, a máquina de escrever era o objeto-símbolo do meio intelectual-acadêmico. Porém, o ato do pajé fez o antropólogo pensar em coisas que ele nunca pensou e  escreveu com sua própria máquina de escrever.

Graças ao ato artístico-decolonial  do pajé-feiticeiro-bruxo, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos eurocentrados.

 Todo objeto é fruto de uma prática social-simbólica. Por trás de todo objeto, mesmo de um celular de último tipo, existe uma prática social que o mercado escamoteia ao transformar o celular  em mero objeto de culto consumista, que “humaniza” o objeto ao mesmo tempo que “coisifica” o ser humano.

Não apenas os objetos são resultados de uma prática social-simbólica: os conceitos e ideias  com os quais pensamos o mundo e  a nós  mesmos também o são.

O indígena era o “outro” do branco, mas o branco também era o “outro” do indígena. Nem todos são brancos, nem todos são indígenas, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal.

 É essa universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( “mesmal” é como  o poeta Manoel de Barros define a “antipoesia”).

Para conseguirmos enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a b4rbárie é tecnológica,  só mesmo redescobrindo em nós  um  olhar ancestral que nos conecte, com a mente e com o corpo,  à natureza (a mesma que ensina o pajé Espinosa). Para que nossas  palavras sejam como  arcos e flechas em ação de resistência e defesa da tribo, e não  mero enfeite teórico em livros.

Pois nada é mais contrário ao olhar vestido com uniformes do fascista do que o olhar nu e livre do indígena.

 

 

 "Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios.

Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.”

(Manoel de Barros)

 

“Aprendi com os poetas da tribo.”

(Krenak)







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