Para Espinosa, não apenas as ideias
são modos ou maneiras do pensamento, o amor e o desejo também o são[1].
Ideia, amor e desejo têm algo em comum: são modos do pensamento. Amor e desejo
também são maneiras de pensar. Mas há uma diferença entre a ideia e os outros
dois modos do pensamento citados aqui, uma vez que amor e desejo são afetos.
Assim, ideia e afetos são modos do pensamento, são maneiras de pensar.
Segundo Espinosa, os afetos nunca se
dão sozinhos no pensamento, eles sempre ocorrem com a presença de uma ideia.
Por exemplo, para amar algo é preciso haver na mente a ideia daquilo que se ama; para se desejar
uma coisa , é necessário ter a ideia do que se deseja.
Os afetos são referidos por Espinosa
ao “ânimo”. O ânimo é a mente compreendida mais do que no sentido meramente intelectivo,
uma vez que o ânimo é a mente unida ao corpo , à vida[2].
Apenas a ideia, enquanto modo do
pensamento, pode ser concebida pelo pensar sem a necessidade de um afeto do
qual dependa. Essa autonomia da ideia
será fundamental para compreendermos a “clínica” de Espinosa como meio para se
vencer as paixões tristes geradoras de servidão e impotência. Mas para essa
relação entre ideia e afeto ser melhor compreendida, é preciso tocar em mais um
ponto.
Os afetos não são ideias, embora
sejam modos do pensamento (entendido
como ânimo) . Os afetos são modos não representativos do pensamento: os afetos
não representam coisas, eles expressam, e é preciso sublinhar bem
essa palavra, processos do pensamento.
Enfim, os afetos expressam nosso ânimo. Já as ideias são modos representativos
do pensamento: elas têm seu “ideado” ( aquilo do qual são ideia) fora do
pensamento.
Vejamos isso em um exemplo simples
colhido na vida : João ama Maria. João sente o afeto-amor acompanhado da ideia
de Maria. Mas a ideia de Maria que João forma em sua mente não é a Maria que
existe no mundo, pois há uma diferença entre a ideia, enquanto modo do
pensamento, e seu “ideado” ( o ser ou objeto que corresponde à ideia). De igual
maneira, o amor não é Maria, o amor é um
modo do pensar que expressa um estado da mente de João, o seu ânimo.
Pode ser que esse amor tenha
nascido sem João conhecer bem Maria, um
amor causado por meras aparências ( e não apenas a aparência física). Quando o
amor nasce assim , ele se torna tão inconstante quanto as aparências que
projetamos sobre os seres externos, podendo assim levar ao sofrimento ou
frustrações, caso Maria não sinta o mesmo por João. E o pior: João pode ficar
ressentido com Maria por ela não ser como a ideia que ele tinha dela, uma ideia
criada mais pela imaginação do que pelo entendimento do real ser de Maria.
Por outro lado, mais potente será o afeto-amor quanto mais
adequada for a ideia que formamos do ser amado; e , ao contrário, mais
inconstante e impotente será o amor nascido de aparências ou ideias confusas
acerca do objeto amado.
Enfim, a confusão entre ideia e
ideado tem por fundo uma confusão que a antecede : a não distinção entre ideia
e afeto, representação e expressão. O afeto
é um processo que expressa mais a mente do que representa coisas externas. Se essa natureza expressiva do
afeto não for compreendida[3]
, o afeto assim sentido será fonte de dor e sofrimento: amores formados dessa maneira facilmente passam ao seu contrário, o ódio.
Um processo clínico de conhecimento
dos outros e autoconhecimento de nós mesmos pressupõe que
compreendamos a diferença entre ideia e
afeto, a começar pela ideia que devemos formar de nós mesmos, para que os afetos sejam fonte de bons encontros
com os outros.
Mas esse amor-afeto reportado à ideia
das coisas externas será mais confiante e potente se ele for precedido por outra
forma de amor, um amor que é acompanhado da ideia de algo que nunca se ausenta,
que nunca falta , que nunca muda conforme as aparências: a ideia de Deus ou do
Absolutamente Infinito, ou seja, aquilo que Espinosa chama de Natureza.
O afeto-amor que nasce da compreensão do Absolutamente
infinito nunca passa ao seu contrário , nunca se converte em ódio, uma vez que
quem compreende Deus compreende igualmente a necessidade de sua existência, e a
da nossa própria existência como parte dela, com todos os acontecimentos que
ela implica.
Por isso , a compreensão da ideia de
Natureza nunca vem com a ideia sozinha,
uma vez que ela faz nascer na mente afetos afirmativos que não dependem da
reciprocidade das coisas externas, também nos levando a nos relacionar de forma
diferente com as coisas externas, inclusive no afeto reportado a elas.
Assim, quando pensamos nas coisas
finitas que nos cercam, as ideias que formamos delas podem existir sem a
presença do afeto, embora a ideia adequada das coisas sempre gera em nós, como
efeito, o afeto da alegria. Mas quando
formamos a ideia de Deus, dessa ideia nasce necessariamente o afeto-amor. Não o
amor meramente subjetivo ou romântico, e sim amor enquanto compreensão da
Natureza de Deus.
Segundo Espinosa, há duas espécies de
seres: o que existe em si e o que existe em outro. Deus[4]
existe em si. Os seres finitos ,
incluindo nós mesmos, existimos em outro, isto é, em Deus, e dele dependemos
para existirmos e sermos compreendidos.
Somente Deus é causa de sua própria existência, uma vez que
a essência de Deus é existir. A existência de Deus é idêntica à sua Potência
que está sempre em ato. Ou seja, Deus não deixa de produzir algo hoje para fazê-lo
amanhã, nem o que ele produz poderá deixar de ser um dia. Tudo o que Deus produz como
modificação ou maneira de ser dele é necessário e eterno.
Cada coisa singular tem por causa imanente Deus,
porém compreendido de determinada maneira. E não há como compreender essa
determinada maneira que cada coisa é sem compreender Deus, que age de infinitas
e diferentes maneiras.
Não só as alegrias e amores que nos
nascem em nossas relações com as coisas finitas externas, mas também os ódios e
as tristezas não podem ser compreendidos
adequadamente sem compreendermos como é e age a Natureza. Sobretudo no caso dos
ódios e tristezas (as paixões tristes), a compreensão adequada das causas que
as geram nos auxiliam a não sermos efeitos delas, uma vez que a causa delas não
são somente as coisas externas, mas a impotência que pode se instalar no nosso
pensar quando não distinguimos adequadamente a ideia e seu ideado, a ideia e os
afetos.
Deus é a causa imanente[5]
da existência de todas as coisas, mas ele não é a causa de determinada coisa
nos provocar ódio ou tristeza. O ódio e a tristeza nascem exatamente de não
compreendermos adequadamente as causas que
fazem cada coisa ser como é.
[1]
Ética, Parte 2, axioma 3.
[2]
A “coragem” é definida por Espinosa como “presença do ânimo”, ao passo que a
covardia é sua ausência. Quando o ânimo se faz presente, agenciando corpo e
mente, ele age e afasta o “des-ânimo”.
[3]
Essa natureza expressiva do afeto ganha toda a sua potência na arte. Mesmo uma
música sem palavras é carregada de afetos : o compositor pôs no som os afetos,
fazendo do som uma realidade também expressiva . Quando o poeta fala da lua em
seu poema, a lua em questão não é aquela que é o ideado da ideia de lua que o
astrônomo forma em sua mente ; a lua do poema é um afeto que o poeta fez
sobreviver e transmutou às suas afecções pessoais , dando a ela uma matéria
igualmente expressiva. Quando lemos o poema, nosso ânimo também é afetado, daí o
efeito clínico que pode advir dessa experiência com a arte. Como ensina
Deleuze, a filosofia e a poesia nascem de uma “astronomia apaixonada” ( no
sentido das paixões alegres que potencializam nosso ânimo). Os filósofos e poetas que mais nos tocam são
aqueles que não escrevem e falam apenas com a mente, eles falam e escrevem
também com o ânimo, para que os leiamos ou ouçamos não apenas com os olhos , com
os ouvidos ou com a mente ( teoricamente) , mas com todo nosso ser .
[4] O Deus
de Espinosa não é o da religião. O Deus de Espinosa é a própria existência
compreendida de forma absolutamente infinita. O cosmos e o universo material
são modos de Deus, são maneiras de ele ser. As ideias e o pensamento são
igualmente modos de Deus.
[5]
Deus não causa/produz a existência de cada coisa uma a uma, ele causa/produz a
existência de todas as coisas de forma concatenada e eterna. Para existirem no
tempo e no espaço, porém, cada coisa singular depende de outra coisa singular
com a qual entra em relação ( como "causa próxima", e não como causa imanente). Se essa relação nos favorece e compõe com nossa
maneira , temos um bom encontro que gera aumento de potência, isto é , de
capacidade de agir e pensar; se a relação for um mau encontro, ela nos decompõe
e despotencializa, gerando tristeza e ódio, enfim, servidão. Mas cada coisa que
existe não é o "Mal" ou o "Bem" em si, elas podem ser boas ou más conforme
combinarem ou não com nossa maneira de
ser. Deus é a causa imanente tanto de nossa existência quanto à do
mosquito. Porém Deus não é a causa
da dengue, esta nasce de uma relação nossa com o mosquito, uma relação que nos despotencializa.
Quando, através do conhecimento, descobrimos uma vacina para a dengue, Deus-Natureza não é a causa da vacina, Deus-Natureza é causa de
nosso pensamento que é capaz de pensar adequadamente a existência do mosquito,
descobrindo como é sua maneira de ser. Conhecer a maneira de ser de cada coisa ,
sua realidade efetiva, é desdemonizá-la ( a demonização , seja ela qual for, revela
mais a imaginação reativa de quem demoniza do que revela a natureza real do ser demonizado).
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