sábado, 6 de janeiro de 2024

Espinosa e a multitudo

 

Segundo Espinosa, há dois tipos de seres: o que existe em si , e que só de si depende para existir ( sendo causa de seu próprio existir) , e o que existe em outro,  neste outro que depende só de si para existir. Deus, a Natureza, é o que existe em si, já os outros seres , os que dependem da Natureza para existirem , são modificações , modos ou maneiras de ser  da Natureza.

Deus , ou a Natureza, é o único existente cuja essência implica necessariamente a existência, uma vez que a essência de Deus é existir. Como Deus é único, não existe nada fora dele que possa agir sobre ele,    fazendo-lhe padecer efeitos. Pois todo padecer é uma forma de constrangimento indicando passividade. Assim, todas as modificações de Deus  são ativas: são produzidas por ele mesmo. Essas modificações ( ou afecções) ativas são Deus mesmo,  porém compreendido de certa maneira : não de uma maneira apenas, mas de infinitas maneiras.

Na definição da essência de um modo finito singular, ao contrário,  não está implicada a existência desse mesmo modo, tampouco quanto tempo ele vai durar, isso porque toda existência depende de Deus de forma primeira.

Na definição de Homem, por exemplo, não está implicado em sua essência quantos homens existem , e nem quanto cada um durará em suas vidas. Mas como “Homem” é uma ideia abstrata , o Homem não existe, o que existe é Pedro, Maria, José, Ana...Porém  a existência de cada ser singular , quanto tempo de vida eles terão, não está incluída em suas respectivas essências, de onde se conclui que a existência de cada modo singular vem de fora de suas respectivas essências. Para cada modo singular finito, existir é abrir-se ( ou desabrir-se, como diz Manoel) a um fora. Ou seja, existir é viver relações.

Cada modo singular finito é uma modificação de Deus. Enquanto tal, todo modo singular finito é eterno. Não apenas a essência de um modo singular  finito não pode existir e ser compreendida sem Deus, também não pode ser compreendida, e muito menos existir, a existência desse mesmo modo singular finito. Pois sua existência se explica pela existência de Deus enquanto este se expressa pela existência de outros modos finitos existentes diferentes.

Por exemplo, Pedro é filho de João. A existência de Pedro se explica , de certa maneira, pela existência de João. Mas João não é causa da existência de Pedro. Se o fosse, Pedro existiria em João, e a existência de Pedro só poderia ser/existir e ser compreendida pela existência de João, o que é um absurdo . Assim, a existência de Pedro implica a existência de João enquanto este implica a existência de José, pai de João e avô de Pedro. Ou melhor, a existência de Pedro implica também a existência de Maria e de Ana, sua mãe e avó , respectivamente.

Mas a existência de Pedro, de João, de José, de Maria...implica ainda a existência de seus ancestrais, cuja existência implica a existência da terra, que implica por sua vez  a existência do sol, e a existência deste implica a  do universo, que implica   ainda a existência do infinito. Ou seja, a própria existência de Pedro enquanto modo singular finito , por onde começamos nosso exemplo e raciocínio, implica a existência do infinito, isto é, de Deus enquanto se expressa de infinitas maneiras  , inclusive como outros modos finitos diferentes de Pedro ( João, Maria, Ana, José, terra , sol, estrelas, universo, cosmos...).

Para Espinosa, a existência de qualquer coisa singular finita não pode ser/existir  e nem ser concebida sem a existência de Deus, o Absolutamente Infinito. É por essa razão que, segundo Espinosa, livre e sábio não é quem se isola e busca viver à parte, como se fosse uma divindade . Ser livre e sábio é ir para fora e compor relações . E isso também explica por que o livro principal de Espinosa tem por título “Ética”.

Para Espinosa, por mais que muitos sejam volúveis e não confiáveis, somos nós que não podemos ser volúveis e não confiáveis para nós mesmos em primeiro lugar. Assim, é preferível tentarmos agir buscando composições-agenciamentos , por mais raros que sejam, do que se colocar em altares e , de lá, desprezar aqueles que imaginamos viverem abaixo ( ou, pior ainda, colocar-se abaixo de altares sobre os quais se colocam indivíduos aproveitadores  cujo poder advém de nos apequenarmos...).

E aqui surge   a importância da democracia em Espinosa, não a democracia liberal representativa, mas democracia enquanto conjunto de relações entre os modos finitos existentes ( a multitudo). A democracia não é o lugar de altares, como num templo, e nem de hierarquias rígidas, à maneira da caserna. Tanto altares transcendentes quanto casernas rigidamente hierárquicas impedem o pensar livre e fomentam obediência.

A própria história nos ensina que as sociedades nas quais o altar e a caserna , extrapolando suas funções, também querem poder político, em tais sociedades é imposta uma aristocracia militar  ou teocracia , nunca uma democracia. Mesmo porque uma democracia não pode ser imposta, e sim construída. E onde não há democracia, não pode haver filosofia.



                             ( este livro é apenas uma sugestão)

 

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