quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

a definição-afirmação originária de Espinosa

 

A Ética de Espinosa abre com oito definições, que são afirmações originárias que formam um plano, um "plano de imanência",  para a construção de seu pensamento. A primeira das definições  , da qual todas as outras dependem, afirma:

“Por  causa de si compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente .”

Embora ele  não nomeie, o objeto da afirmação é Deus, que é causa de sua própria existência, uma vez que a essência  de Deus  é existir.

Deus não pode ser concebido a não ser como existente: à maneira de  um artista cuja obra a criar é a si mesmo, Deus é , ao mesmo tempo, o barro , os instrumentos que modelam o barro, a mão que segura os instrumentos , a ideia que orienta o modelar e a mente que pensa a ideia de si mesmo, produzindo-a. Contudo, a imagem da escultura tem seus limites, pois toda escultura  é cópia de algo determinado possuidor de uma imagem , ao passo que Deus não tem  imagem antropomórfica ou semelhante a qualquer outro ser que seja um modo seu. Da face de Deus, diz Espinosa, somente o universo inteiro , tanto o tangível como o intangível, pode ser o espelho. 

Essa afirmação de Espinosa poderia ser um verso, sem dúvida. Um verso de uma poesia do pensamento.

A palavra “definição”, porém,  não traduz bem o sentido dessa afirmação de Espinosa . Pois “de-finir” é “dar fim”, “limite”, ao passo que essa afirmação dá um começo, um começo que sempre recomeça a cada vez que lemos essa afirmação que “desabre” e nos põe em “deslimite”, diria Manoel de Barros.

Essa afirmação não é para ser decorada. Seu sentido nunca se esgota. Não é apenas lógico-analítico  o seu sentido, pois ele também é poético, cósmico, político, clínico, afetivo, existencial.

O Deus de Espinosa não é o Deus da religião, seja ela qual for. Não é um objeto de crença, é uma ideia filosófica cuja evidência, como a luz de um relâmpago,  prescinde de toda forma de crença. O Deus de  Espinosa é a Natureza. E cada coisa que existe é uma modificação ou modo da Natureza.

Deus não criou as coisas do nada, pois cada coisa existe nele como modo ou maneira de ser de sua Potência. E como a essência de Deus é Absolutamente Infinita, dela decorrem infinitas coisas de infinitas maneiras.

A Natureza não é apenas árvores, rios, mares, bichos , plantas, enfim, ecologia; a Natureza também é ideia, pensamento, afeto, ações, linguagem, coração e cérebro, ou  seja, ecosofia.

A definição que abre a Ética  não define tudo, porém ela expressa  o Todo-Potência onde tudo está inserido e existe. Para Espinosa, Deus não criou os seres, uma vez que os seres existem em Deus, e sem Deus não podem existir e nem  serem concebidos, pensados, inteligidos.

A definição que Espinosa fornece não é apenas para ser lida, ela também é para ser sentida, imaginada, intuída e meditada no sentido original de “meditação”: “aplicar a medicação”, “usar o remédio”. Meditar é medicar corpo e mente. E como todo bom remédio, a melhor hora do dia para aplicá-lo é de manhã, para assim despertamos  mais do que abrindo os olhos.

Para quem souber extrair , a cada vez que o ler, o sentido infinitamente variado que vive nessa definição-afirmação de Espinosa, compreenderá que ela não é um mantra, uma oração ou prece. Porém essa definição-afirmação fornece ao pensamento , mais do que qualquer outra coisa, uma força que une, ao mesmo tempo e de forma necessária, raciocínio e criatividade, razão e imaginação, ideia e afeto.







 



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