A Ética de Espinosa abre com oito
definições, que são afirmações originárias que formam um plano, um "plano de imanência", para a construção de seu pensamento. A primeira das definições , da qual todas as outras dependem, afirma:
“Por causa de si compreendo aquilo cuja essência envolve
a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como
existente .”
Embora ele não nomeie, o objeto da afirmação é Deus, que
é causa de sua própria existência, uma vez que a essência de Deus é existir.
Deus não pode ser concebido a não ser
como existente: à maneira de um artista
cuja obra a criar é a si mesmo, Deus é , ao mesmo tempo, o barro , os
instrumentos que modelam o barro, a mão que segura os instrumentos , a ideia
que orienta o modelar e a mente que pensa a ideia de si mesmo, produzindo-a. Contudo, a imagem da escultura tem seus limites, pois toda escultura é cópia de algo determinado possuidor de uma imagem , ao passo que Deus não tem imagem antropomórfica ou semelhante a qualquer outro ser que seja um modo seu. Da face de Deus, diz Espinosa, somente o universo inteiro , tanto o tangível como o intangível, pode ser o espelho.
Essa afirmação de Espinosa poderia
ser um verso, sem dúvida. Um verso de uma poesia do pensamento.
A palavra “definição”, porém, não traduz bem
o sentido dessa afirmação de Espinosa . Pois “de-finir” é “dar fim”, “limite”,
ao passo que essa afirmação dá um começo, um começo que sempre recomeça a cada
vez que lemos essa afirmação que “desabre” e nos põe em “deslimite”, diria Manoel
de Barros.
Essa afirmação não é para ser
decorada. Seu sentido nunca se esgota. Não é apenas lógico-analítico o seu sentido, pois ele também é poético, cósmico,
político, clínico, afetivo, existencial.
O Deus de Espinosa não é o Deus da religião,
seja ela qual for. Não é um objeto de crença, é uma ideia filosófica cuja evidência,
como a luz de um relâmpago, prescinde de
toda forma de crença. O Deus de Espinosa
é a Natureza. E cada coisa que existe é uma modificação ou modo da Natureza.
Deus não criou as coisas do nada, pois
cada coisa existe nele como modo ou maneira de ser de sua Potência. E como a essência
de Deus é Absolutamente Infinita, dela decorrem infinitas coisas de infinitas
maneiras.
A Natureza não é apenas árvores,
rios, mares, bichos , plantas, enfim, ecologia; a Natureza também é ideia,
pensamento, afeto, ações, linguagem, coração e cérebro, ou seja, ecosofia.
A definição que abre a Ética não define tudo, porém ela expressa o Todo-Potência onde tudo está inserido e
existe. Para Espinosa, Deus não criou os seres, uma vez que os seres existem em
Deus, e sem Deus não podem existir e nem serem concebidos, pensados, inteligidos.
A definição que Espinosa fornece não
é apenas para ser lida, ela também é para ser sentida, imaginada, intuída e meditada
no sentido original de “meditação”: “aplicar a medicação”, “usar o remédio”.
Meditar é medicar corpo e mente. E como todo bom remédio, a melhor hora do dia
para aplicá-lo é de manhã, para assim despertamos mais do que abrindo os olhos.
Para quem souber extrair , a cada vez
que o ler, o sentido infinitamente variado que vive nessa definição-afirmação de Espinosa,
compreenderá que ela não é um mantra, uma oração ou prece. Porém essa definição-afirmação fornece ao pensamento , mais do que qualquer outra coisa, uma força que une, ao mesmo tempo e de forma
necessária, raciocínio e criatividade, razão e imaginação, ideia e afeto.
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