quinta-feira, 9 de junho de 2022

a floração dos pessegueiros

 

No filme “Sonhos”, de Kurosawa, há uma cena em que uma criança chora porque um jardim de pessegueiros foi derrubado.

Então, perguntam a ela se o choro dela era devido a não poder mais  comer os pêssegos, ou seja, se o choro  era motivado pelo interesse nos frutos, nos pêssegos.

A  criança responde mais ou menos assim: “Eu não estou chorando pelos pêssegos , pois  pêssegos podem ser comprados  em quantidades no mercado . Eu choro porque nunca mais vou poder ver a floração dos pessegueiros: a floração é única e  não se mede em dinheiro, nem se vende no mercado...”.

De repente, ainda chorando, a criança vê algo colorido num  canto daquele  jardim desolado. Ela   chega perto para ver o que é: do tronco de um pessegueiro  cortado e violentado, a vida ali resistiu e perseverava , pois pequenos embriões de floração novamente brotaram.

Então, como se tivesse ganho o mais desejado dos presentes,  a criança enxuga as lágrimas e  sorri.

O pêssego é colhido com as mãos, ao passo que a floração é para ser colhida com os olhos, para que o próprio ver nos olhos floresça, e enxergue mais do que o mero dado.

O pêssego é o produto de uma criação, já a floração é a arte que torna indistintos o artista e sua obra ainda em processo e  brotando dele mesmo, em generosa doação.

O pêssego mata a fome do estômago, mas  a floração mata outro tipo de fome:  fome de arte, de poesia e de criação.

As ideias são como os pêssegos, porém pensar é floração da mente unida ao corpo.

A liberdade não é um fruto pronto que podemos colher, a liberdade  é floração concreta no aqui e agora, como ato libertário  fazendo-se.

Há os que cobiçam  os pêssegos apenas para pôr neles um preço e vendê-los no  mercado, reduzindo    os pêssegos a meros meios  para se acumular capital, poder e dinheiro.

Mas há os que veem riqueza na floração dos seres, uma riqueza que não se mede em dinheiro, pois é uma riqueza que se cultiva com a arte, a filosofia, a cultura e a educação.

Porém , é preciso cuidar dessa floração e agir para que ela sempre aconteça , pois odeiam essa floração, e sempre a ameaçam, os ceifadores e destruidores de jardins.

 

 

 "Poesia é florescer pelos olhos." (Manoel de Barros)


“Filosofia é prática para ensinar a ver.”( Merleau-Ponty)

 

 

 

( imagem: “Pessegueiros em flor”/ Van Gogh)






Um comentário:

cauepizindim disse...

GÉRMEM DO CÁRCERE
(robertomarques)

Por que fugiu?… e, de inanição morreu aquele sentimento antes aprisionado em meu peito? Eu o vigiava e dele cuidava.

Subversivo, perigoso, era feito de lirismo e contagiava-me os ideais, os sonhos, a poesia… Foi num momento de descuido que o prisioneiro escapou à minha vigília. É que os sentimentos nos escapam como água entre os dedos.

Fugiu da minha amizade para a indiferença do mundo. Ingênuo!! Ao deixar a cela que o prendia, ele deixou o seu único abrigo. Perdeu o seu alimento diário: o sonho de liberdade. 

Não sobreviveu à fuga por este mundo concreto, onde o que plantou não floresceu e o que colheu não lhe aplacou a fome que levou do cárcere...

Enfim, livre, morreu o pobre louco… Abençoados sejam todos esses que desconhecem as razões dos que julgam dominar a razão.

Na desvairada empreitada, há de ter encontrado felicidade e motivo para fazer o que de melhor sabia: traduzir ao seu próprio modo as coisas que não enxergamos assim tão bem para delas sabermos mais um pouco. 

Ao fugir, ele libertou-me da cruel incumbência de encarcerar a beleza que eu via naquela alma. Assim, fiquei livre para espalhar por todo lugar aonde eu for, as sementes que dele guardei.

E antes que me condenem às penas que já paguei,
parto em busca do horizonte na direção ao nascente,
onde, sob um sol generoso e em terra fecunda,
possa cada semente, germinada naquele cárcere, se tornar em fruto e em flor.

Porque o amor é para ser compartilhado .

 p.s.:
desfaz-se a retórica...
se o último pensamento resume a questão,
é dispensada a linguagem metafórica,
tudo mais é alegoria, então...