Uma das ideias de que
mais gosto é a de “agenciamento”. É uma daquelas ideias que não se ensina/aprende
apenas falando/escutando, e sim construindo, fazendo.
No coração de
agenciamento está a palavra “agente”. Mas o que é um agente?
O agente pode ser
qualquer coisa que favoreça um agenciamento. Uma música, um livro, uma paisagem... também podem ser o agente de um agenciamento.
Todo agenciamento expressa um encontro que
suspende as dicotomias sujeito/objeto, subjetividade/objetividade.
Mesmo
algo considerado inútil pelo poder dominante pode servir a agenciamentos cuja
“utilidade” não se mede em dinheiro. Nem sempre um agente para um agenciamento se mostra evidente. Às vezes, é
preciso saber achar um agente para nossos agenciamentos, ou até mesmo criá-lo .
Sobretudo, é necessário aprendermos
nós mesmos a sermos um agente para agenciamentos que potencializem os outros
quando eles se encontram conosco. Quando nos agenciamos para mudarmos uma
situação social, por exemplo, nos tornamos agentes uns dos outros.
No poema “Aventura”, Manoel de Barros narra um transformador agenciamento
cujo agente é um simples pote que o
poeta encontra jogado fora de "barriga vazia para cima" num lugar
ermo.
Não faz muito tempo, esse pote deve ter sido o centro das atenções:
todos o queriam perto por guardar algo
que despertava cobiça e interesse. Talvez ele tenha sido um pote cheio de sorvete...
Tamanha deve ser a dor
que o pote sente agora, abandonado . Rejeitado pelos homens após estes o
sugarem, apenas a natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e
regenera, preenche vazios - disso também já sabia Espinosa.
“Inútil”, o pote já não
servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isso que a natureza
produz em tudo aquilo que, ao receber os cuidados dela , sofre um contágio, uma
comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar
com as borboletas", pressagiou o poeta antes de seguir seu caminho.
Tempos
depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar. Lembrou do pote e se preparou
para rever aquela imagem triste do sofrimento.
Porém,
nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou
voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já
havia areia e cisco que a natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à
gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio, um poema
vivo o pote partejou: do ventre do pote um pé de rosas desabrochou...
"Se
a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote
por essa lição que recebeu sob a forma
de rosas.
Em seu agenciamento com o pote, o poeta metamorfoseou as rosas que recebeu em poesia que nos oferta.
E repletos estavam agora o pote e o poeta com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca . Esse agenciamento poético-filosófico também nos lembra o que dizia Plotino:
“Quando uma ideia nos fecunda ,
também sofremos angústia de parto.”
Na imagem,
Manoel em sua "Oficina de Transfazer Natureza" ( era assim que ele se
referia ao espaço onde escrevia suas poesias).
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