segunda-feira, 1 de novembro de 2021

manoel, clarice & deleuze

 

Quando eu era bem criança, antes mesmo de saber ler e escrever , fiz uma rica descoberta que não cabe  no  que ensinam cartilhas e tabuadas: aprendi que se podia brincar também com o pensamento.

Foi assim: após aprender a contar de zero a dez, descobri que o zero nem sempre é zero, isto é , coisa nenhuma. Ele é coisa nenhuma  quando é visto sozinho, isolado, como se fosse um ego ensimesmado.

Mas se engana quem acha que o zero é só isso. Pois quando o zero é colocado para fazer companhia ao 1, e este aceita a companhia do zero, o 1 vira 10. Como pode o zero fazer o mero 1 se tornar dez “uns”, isto é, dez unidades dele mesmo?

E essa interrogação levava a outras: colocando dois zeros , o 1 cresce ainda mais, sem deixar de ser 1, mas ao mesmo tempo já não sendo : ele se torna 100! Colocando mais um zero, nasce o 1.000!

 Descobri então que o zero não é uma “nulidade”, a não ser que se deixe reduzir a isso. Pois  se a gente  coloca o zero  na companhia de outro número dele diferente, do encontro  nascem outros números, como se dentro do zero  existissem potencialidades que a gente só conhece quando ele  "desabre” ( “desabrir”  é  prática poético-pedagógica, existencial,   ensinada  pelo poeta Manoel de Barros) .

O  zero precisa do 1 para se saber mais do que zero. É a diferença, o outro, que o enriquece. Quando o zero  conhece a si próprio, ele vê então o que ele é de verdade:  não coisa nenhuma  , mas um “ovo”, uma realidade cheia de potencialidades. 

Depois de fazer  essa descoberta, ainda bem criança, sempre que alguém perguntava minha idade eu respondia: “Tenho mais de 1.000 anos!”, e os adultos riam achando que eu não sabia contar os anos. Mas na verdade eu  queria dizer , brincando, que o pensar  faz a alma aumentar em mil seu tamanho.

Depois aprendi com poetas e filósofos libertários que o pensar só é autêntico quando faz a gente agir para sair do ovo . E quanto mais gente sair ( mil, milhares, milhões...) , mas difícil fica para o poder autoritário querer nos  reduzir  a coisa nenhuma.

Já adulto, (re)descobri lendo Manoel de Barros aquilo que intuí quando criança: esse nada não é “coisa nenhuma”, tampouco é reativo niilista; ao contrário, ele  pode ser a riqueza da qual nasce o que, para existir,  precisa ser criado.


“Às vezes começa-se a brincar de pensar,

e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.” ( Clarice Lispector)


"A zeroidade é o plano de imanência do pensamento." (Deleuze)




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