quinta-feira, 25 de novembro de 2021

a origem das artes

 

                                                  ARTES, ARS E TECHNÉ[1]

 

 

                                                                                                                                            Só a arte salva.

                                                                                                                                                      (Deleuze)

 

                                                                                              Temos a arte para não morrer da verdade.

                                                                                                                                                   ( Nietzsche)

 

A razão vê

a memória revê

e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.

   (Manoel de Barros)

 

 

No mundo grego, não existia exatamente a noção de “arte” tal como a entendemos hoje. A começar pela origem da palavra “arte”, que vem do latim “ars”, significando aquilo que é criado pelo homem, em contraposição às coisas que são produzidas pela natureza (physis).

Na Grécia, o que nós chamamos de “arte” ( pintura, música,etc.) era designado com  a palavra “techné”[2]. Mas essa palavra também designava atividades que nós hoje não consideramos arte. Inclusive, a palavra “técnica” também se origina de techné. Quando pensamos em técnica hoje, não imaginamos que ela tem origem no mesmo termo que também designava, entre os gregos, a arte.

Portanto, havia vários sentidos para a palavra techné. Uma das abordagens iniciais mais famosas sobre o assunto foi realizada por Platão. Deixando de lado as complexidades do assunto ( cuja abordagem mais detalhada requereria um texto-aula muito longo), podemos resumir que Platão considerava principalmente dois tipos básicos de techné ou arte: as artes por produção ( ou artes poéticas) e as artes por aquisição.

As artes poéticas são todas aquelas cujo produto ou obra depende das habilidades do produtor. Por exemplo, a arte de fabricar sapatos. O bom sapateiro conhece bem a arte de fabricar sapatos. É claro que o bom sapateiro conhece bem o conceito de sapato, tal como aquele que apenas teoriza sobre essa arte. Mas o bom sapateiro não apenas possui o conceito, ele não apenas teoriza sobre os sapatos, pois ele , sobretudo, sabe FAZER um sapato, e ele faz um sapato singular, não um sapato enquanto conceito universal pensável pela mente. Enfim, o bom sapateiro transforma o conceito ou ideia de sapato em algo real e concreto. Ele sabe as habilidades para dar realidade às ideias. E este é o sentido original de poiésis ( ou poesia): produção.

A diferença entre o sapateiro e o autor de uma peça de teatro não está no aspecto da produção, e sim no produto, pois um sapato e uma peça de teatro diferem dos usos para os quais foram feitos. Porém, tanto um sapato quanto uma peça teatral eram vistos como produtos de uma habilidade de saber-fazer, habilidade essa que o produtor tirava de si mesmo ( ou sob influência das Musas).

Somente na Modernidade é que surge a preocupação com o Sentir ( aisthesis) a obra de arte, nascendo assim a Estética. Enquanto a Poética é a marca do mundo grego, a Estética  só pôde surgir na Modernidade, quando então a arte era vista nela mesma, e não para fins técnicos ou utilitários. Surge assim  a Ideia de Belas Artes.

Mas estávamos falando de dois sentidos originais da palavra “techné” tomando por referência Platão. Além da arte por produção ( arte poética), Platão nos fala da arte por aquisição. Aqui, como a própria palavra indica, o produto da arte não é produzido, e sim adquirido.

Para exemplificar a  arte poética ( arte de produção) demos o exemplo do sapateiro que produz sapatos. Continuando nessa mesma área, podemos dizer que o comerciante de sapatos representa a arte por aquisição. Pois o comerciante de sapatos não produziu os sapatos que vende, eles os adquiriu do sapateiro. Ele os adquiriu empregando um meio : o dinheiro. Então, fica claro que , ao contrário da arte poética, aquele que exerce a arte por aquisição não conhece muito bem o conceito ou ideia daquilo que ele adquiri , pois o que define a arte por aquisição não é a produção ou saber-fazer , e sim o possuir os meios para adquirir algo que um outro produziu.

Platão amplia ainda mais seu raciocínio explicativo. Ele diz que não apenas o dinheiro pode ser um meio para se adquirir aquilo que não se fabricou, também as palavras podem ser um meio de aquisição de algo que não se conhece bem e nem se produziu. E aqui reside um perigo, diz ele. Platão  passa da questão dos sapatos para uma questão mais profunda: as palavras. A gente sabe para que servem os sapatos, mas para que servem as palavras?

As palavras têm vários usos: expressar emoções, informar sobre fatos, construir narrativas, ser o instrumento para o conhecimento  do mundo. De todos esses empregos, o mais importante é o conhecimento do mundo, pensava Platão.

Mas a palavra é apenas um instrumento para tal conhecimento, ela não é a protagonista, pois a protagonista é a razão ( titular da episteme ou ciência). E aqui estaria a diferença entre a techné , a ciência e a filosofia: ciência e filosofia não produzem o objeto que conhecem , pois esses objetos existem no mundo, fora da mente ( e são reais) . Para dar a conhecer esses objetos, o cientista e o filósofo empregam as palavras, mas apenas como um meio para servir aos conceitos. O cientista e o filósofo empregam a razão para conhecer o mundo, e só depois se valem das palavras .

Contudo, diz Platão, há aqueles que empregam as palavras como meios de aquisição do conhecimento, sem de fato conhecerem o que estão adquirindo com as palavras. Ao invés de emitirem  conhecimento, eles propagam mera opinião ( doxa).  Eles são como os comerciantes , só que agora são comerciantes do saber. Pois creem que saber usar as palavras é  o mais importante, e assim se passam por sábios, embora não tenham o conceito daquilo que falam.

Esses “sábios” em aparência são aqueles que sabem apenas usar as palavras, porém nada sabem daquilo que as palavras deveriam nos ajudar a conhecer. Com eles, a palavra não é apenas meio ou instrumento , ela se torna um fim em si mesmo, um fim para obter poder. Esses comerciantes de conhecimento, segundo Platão, são os sofistas. Eles produzem apenas retórica, não produzem conhecimento.

Mas e o escritor-poeta, ele também é tão perigoso quanto os sofistas? Para Platão , e isso mostra seu extremo racionalismo, o escritor-poeta também faz um uso desviante da palavra. Pois o escritor-poeta não conhece de fato aquilo sobre o qual fala, ele inventa. E entre a invenção e a verdade, Platão opta esta última, dando a entender que apenas a ciência e a filosofia, por não serem techné mas episteme, podem colocar o homem no caminho da verdade, ao menos na verdade em que Platão crê ( Nietzsche, por exemplo, criticará profundamente essa noção de verdade platônica excludente da criação e poesia).

Aristóteles difere em Platão acerca desse e outros assuntos, embora também mantenha a arte em lugar subordinado em relação à ciência e à filosofia. Porém, ele reconhece um valor social da arte, incluindo o teatro e a poesia.[3]Com ele, a noção de arte começa a se aproximar do sentido que hoje compreendemos .



“Aristóteles contemplando o busto de Homero”(1653), de Rembrandt. Aqui se pode observar a postura de admiração do filósofo ao poeta. Aristóteles pousa com cuidado a mão direita , a mão com a qual ele escreve sua filosofia, sobre a cabeça do poeta, como se buscasse nela a inspiração. Homero, que era cego, faz o filósofo olhar longe...muito além de meras teorias e conceitos abstratos. Há uma luz transversal e intensa, como a luz do sol, que parece se desprender dos livros ( no alto à esquerda) , passar pela  cabeça do poeta, envolvendo-a, e se irradiar sobre o filósofo absorto. “Contemplar” vem de  “com-templo”:  “entrar onde mora o divino”. Divino não no sentido religioso, mas enquanto espaço transfigurador das Musas.  

 

 






[1] Texto-aula elaborado pelo professor Elton Luiz. Como complemento dessa aula, sugerimos a leitura do texto-aula sobre o GOSTO.

[2] Uma boa entrada no tema é o texto intitulado “Elogio da literatura: defesa da poesia”, Prefácio escrito por Enid Dobranszky  ao livro Defesas da poesia, de Philip Sidney e Percy Shelley, São Paulo, Iluminuras , 2002.

[3] Tratei desse assunto no texto-aula sobre Aristóteles e as artes.

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