ARTES,
ARS E TECHNÉ[1]
Só
a arte salva.
(Deleuze)
Temos a arte para não morrer da verdade.
( Nietzsche)
A razão vê
a memória revê
e a imaginação
transvê.
É preciso transver o
mundo.
(Manoel de Barros)
No mundo grego, não
existia exatamente a noção de “arte” tal como a entendemos hoje. A começar pela
origem da palavra “arte”, que vem do latim “ars”, significando aquilo que é
criado pelo homem, em contraposição às coisas que são produzidas pela natureza
(physis).
Na Grécia, o que nós
chamamos de “arte” ( pintura, música,etc.) era designado com a palavra “techné”[2]. Mas essa
palavra também designava atividades que nós hoje não consideramos arte. Inclusive,
a palavra “técnica” também se origina de techné. Quando pensamos em técnica
hoje, não imaginamos que ela tem origem no mesmo termo que também designava,
entre os gregos, a arte.
Portanto, havia vários
sentidos para a palavra techné. Uma das abordagens iniciais mais famosas sobre
o assunto foi realizada por Platão. Deixando de lado as complexidades do
assunto ( cuja abordagem mais detalhada requereria um texto-aula muito longo),
podemos resumir que Platão considerava principalmente dois tipos básicos de techné
ou arte: as artes por produção ( ou artes poéticas) e as artes por
aquisição.
As artes poéticas são
todas aquelas cujo produto ou obra depende das habilidades do produtor. Por
exemplo, a arte de fabricar sapatos. O bom sapateiro conhece bem a arte de
fabricar sapatos. É claro que o bom sapateiro conhece bem o conceito de sapato,
tal como aquele que apenas teoriza sobre essa arte. Mas o bom sapateiro não
apenas possui o conceito, ele não apenas teoriza sobre os sapatos, pois ele ,
sobretudo, sabe FAZER um sapato, e ele faz um sapato singular, não um sapato
enquanto conceito universal pensável pela mente. Enfim, o bom sapateiro
transforma o conceito ou ideia de sapato em algo real e concreto. Ele sabe as
habilidades para dar realidade às ideias. E este é o sentido original de
poiésis ( ou poesia): produção.
A diferença entre o
sapateiro e o autor de uma peça de teatro não está no aspecto da produção, e
sim no produto, pois um sapato e uma peça de teatro diferem dos usos para os
quais foram feitos. Porém, tanto um sapato quanto uma peça teatral eram vistos
como produtos de uma habilidade de saber-fazer, habilidade essa que o produtor
tirava de si mesmo ( ou sob influência das Musas).
Somente na Modernidade é
que surge a preocupação com o Sentir ( aisthesis) a obra de arte,
nascendo assim a Estética. Enquanto a Poética é a marca do mundo grego, a Estética
só pôde surgir na Modernidade, quando
então a arte era vista nela mesma, e não para fins técnicos ou utilitários. Surge
assim a Ideia de Belas Artes.
Mas estávamos falando de
dois sentidos originais da palavra “techné” tomando por referência Platão. Além
da arte por produção ( arte poética), Platão nos fala da arte por aquisição.
Aqui, como a própria palavra indica, o produto da arte não é produzido, e sim
adquirido.
Para exemplificar a arte poética ( arte de produção) demos o
exemplo do sapateiro que produz sapatos. Continuando nessa mesma área, podemos
dizer que o comerciante de sapatos representa a arte por aquisição. Pois o
comerciante de sapatos não produziu os sapatos que vende, eles os adquiriu do
sapateiro. Ele os adquiriu empregando um meio : o dinheiro. Então, fica claro
que , ao contrário da arte poética, aquele que exerce a arte por aquisição não
conhece muito bem o conceito ou ideia daquilo que ele adquiri , pois o que
define a arte por aquisição não é a produção ou saber-fazer , e sim o possuir
os meios para adquirir algo que um outro produziu.
Platão amplia ainda mais
seu raciocínio explicativo. Ele diz que não apenas o dinheiro pode ser um meio
para se adquirir aquilo que não se fabricou, também as palavras podem ser um
meio de aquisição de algo que não se conhece bem e nem se produziu. E aqui
reside um perigo, diz ele. Platão passa
da questão dos sapatos para uma questão mais profunda: as palavras. A gente
sabe para que servem os sapatos, mas para que servem as palavras?
As palavras têm vários
usos: expressar emoções, informar sobre fatos, construir narrativas, ser o
instrumento para o conhecimento do
mundo. De todos esses empregos, o mais importante é o conhecimento do mundo,
pensava Platão.
Mas a palavra é apenas um
instrumento para tal conhecimento, ela não é a protagonista, pois a
protagonista é a razão ( titular da episteme ou ciência). E aqui estaria a
diferença entre a techné , a ciência e a filosofia: ciência e filosofia não
produzem o objeto que conhecem , pois esses objetos existem no mundo, fora da
mente ( e são reais) . Para dar a conhecer esses objetos, o cientista e o
filósofo empregam as palavras, mas apenas como um meio para servir aos
conceitos. O cientista e o filósofo empregam a razão para conhecer o mundo, e
só depois se valem das palavras .
Contudo, diz Platão, há
aqueles que empregam as palavras como meios de aquisição do conhecimento, sem
de fato conhecerem o que estão adquirindo com as palavras. Ao invés de emitirem conhecimento, eles propagam mera opinião ( doxa).
Eles são como os comerciantes , só que
agora são comerciantes do saber. Pois creem que saber usar as palavras é o mais importante, e assim se passam por
sábios, embora não tenham o conceito daquilo que falam.
Esses “sábios” em
aparência são aqueles que sabem apenas usar as palavras, porém nada sabem
daquilo que as palavras deveriam nos ajudar a conhecer. Com eles, a palavra não
é apenas meio ou instrumento , ela se torna um fim em si mesmo, um fim para
obter poder. Esses comerciantes de conhecimento, segundo Platão, são os
sofistas. Eles produzem apenas retórica, não produzem conhecimento.
Mas e o escritor-poeta, ele também é tão perigoso quanto os sofistas? Para Platão , e isso mostra seu extremo racionalismo, o escritor-poeta também faz um uso desviante da palavra. Pois o escritor-poeta não conhece de fato aquilo sobre o qual fala, ele inventa. E entre a invenção e a verdade, Platão opta esta última, dando a entender que apenas a ciência e a filosofia, por não serem techné mas episteme, podem colocar o homem no caminho da verdade, ao menos na verdade em que Platão crê ( Nietzsche, por exemplo, criticará profundamente essa noção de verdade platônica excludente da criação e poesia).
Aristóteles difere em Platão acerca desse e outros assuntos, embora também mantenha a arte em lugar subordinado em relação à ciência e à filosofia. Porém, ele reconhece um valor social da arte, incluindo o teatro e a poesia.[3]Com ele, a noção de arte começa a se aproximar do sentido que hoje compreendemos .
“Aristóteles contemplando o busto
de Homero”(1653), de Rembrandt. Aqui se pode observar a postura de admiração do
filósofo ao poeta. Aristóteles pousa com cuidado a mão direita , a mão com a qual ele escreve sua filosofia, sobre a cabeça
do poeta, como se buscasse nela a inspiração. Homero, que era cego, faz o filósofo olhar longe...muito além de meras teorias e conceitos abstratos. Há uma luz
transversal e intensa, como a luz do sol, que parece se desprender dos livros ( no alto à esquerda) ,
passar pela cabeça do poeta, envolvendo-a, e se irradiar sobre o filósofo
absorto. “Contemplar” vem de “com-templo”:
“entrar onde mora o divino”. Divino não
no sentido religioso, mas enquanto espaço transfigurador das Musas.
[1]
Texto-aula elaborado pelo professor Elton Luiz. Como complemento dessa aula, sugerimos
a leitura do texto-aula sobre o GOSTO.
[2]
Uma boa entrada no tema é o texto intitulado “Elogio da literatura: defesa da
poesia”, Prefácio escrito por Enid Dobranszky ao livro Defesas da poesia, de Philip
Sidney e Percy Shelley, São Paulo, Iluminuras , 2002.
[3]
Tratei desse assunto no texto-aula sobre Aristóteles e as artes.
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