sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

MARIAS DO BRASIL


( a fala preconceituosa do  ministro  em relação às empregadas domésticas me fez lembrar de um episódio que vivi, postado aqui no ano passado )

Naquele dia, o hall  da Uerj estava repleto de estudantes sentados  no chão formando uma roda, uma “ágora”. A gente estava ali para assistir ao  Teatro do Oprimido. Augusto Boal , seu criador, foi ao centro da roda e explicou  o tema da peça : uma preconceituosa   elitista   tinha um filho  dependente de drogas, porém ela desconhecia o fato. Isso gerará uma situação onde haverá um opressor e um oprimido. Boal se retira , a peça começa.
A primeira cena  mostra o filho entrando escondido  no quarto da mãe para surrupiar um relógio caro para trocá-lo por drogas. Ao se dar  conta do furto,  a mulher  grita: “Maria!” . Mal a trabalhadora  doméstica entra,  já a fere um grito: “Cadê meu relógio!?”Por ter feito faculdade, a patroa não se equivocava nas regras da gramática. Inclusive, essa destreza com as palavras  fazia delas armas a serviço do preconceito e do ódio . No auge da violência simbólica,  entra o Boal e diz: “parem a cena!”, e pergunta  à plateia : “alguém quer tomar o lugar do oprimido para  tentar vencer o opressor?” Uma estudante de psicologia levantou a mão, foi até  ao Boal  e pegou a vassoura da personagem (a vassoura  era o elemento cênico a simbolizar o oprimido). Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Porém, a atriz-patroa, extremamente hábil e agressiva, pôs abaixo com facilidade as táticas psicológicas da estudante.  A aluna pediu para  sair. Outro estudante levantou o braço ,  um estudante de direito.  Boal passou-lhe a vassoura , recomeçou a peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um ponto fraco: comportava-se  mais como um advogado, não como a vítima de fato. Ele não sabia o que era ser mulher, pobre, negra, explorada...Também não resistiu. Ninguém mais levantava a mão, fez-se um silêncio. Pensei comigo: “Será que a teoria nada pode contra a ignorância armada com palavras? Mas ou a filosofia é uma arma para a gente lutar contra isso ou então não é nada...”
Mas enquanto tomava coragem para  ir ao palco  olhei  para trás e vi, na entrada do banheiro feminino, a faxineira de verdade da Uerj espreitando tudo.  Ela estava “invisível” a todos.  Quando  o Boal perguntou se deixaríamos a opressão vencer,   a faxineira  tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar ela!”, e  foi atravessando de vassoura na mão por entre os alunos . O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome dela.  “Maria da Anunciação ”, respondeu nervosa.  Boal deu-lhe a vassoura da personagem  e  Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a da arte e a da vida, eram exatamente iguais! Quando a peça recomeçou, a patroa retomou seus protofascismos. Contudo ,Maria não se curvou, tampouco entrou em disputas dialéticas. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”,  e fez dela também seu instrumento de  indignação:  Maria saiu dando vassouradas na opressora preconceituosa... E batia de verdade! Foi preciso toda a equipe para segurá-la,  Maria era forte, muito forte.... Explicaram para ela que era tudo de mentira. Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não acontece com vocês!”. Aos poucos ela foi se acalmando, pediu água com açúcar, já sorria. Todo mundo sorria. E de vassoura na mão voltou Maria  para seu trabalho  passando  sorrindo diante da gente como uma professora que acaba de dar  uma excelente aula.



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