segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

linha de fuga...



EURÍDICE

Uma pessoa tem um corpo,
Um só, sozinho.
A alma já está farta
De ficar confinada dentro
De uma caixa, com orelhas e olhos
Do tamanho de moedas,
Feita de pele — só cicatrizes —
Cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
Para a cúpula do céu,
Sobre um raio gélido, 
Até uma rodopiante revoada de pássaros,
E ouve pelas grades
Da sua prisão viva
O crepitar de florestas e milharais,
O troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
Como um corpo sem camisa —
Nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
Ao salão depois do baile,
Quando não há ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
Vestida com outras roupas:
Que se inflama enquanto corre
Da timidez à esperança;
Pura e sem sombra,
Como fogo, ela percorre a Terra,
Deixa lilases sobre a mesa
Para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não te aflige
Por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar teu aro de cobre,
Corre com ele mundo afora, 
Enquanto, em notas firmes
De tom alegre e frio, 
Em resposta a cada passo que deres,
A Terra soar em teus ouvidos.

(Tarkovski )

- Na mitologia grega, "Eurídice" é um dos nomes da alma, assim como "Psiquê" e "Pneuma" também o são. Eurídice é o par de Orfeu, símbolo-arquetípico da condição de poeta.

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