quarta-feira, 17 de maio de 2017

a proximidade

Segundo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. O principal agente dessa confusão é o protagonismo exacerbado da técnica. Por exemplo, a invenção do trem levou o homem a crer que o mundo diminuiu, pois ele pôde vencer as distâncias mais rápido do que quando dispunha apenas do cavalo como meio de transporte. O avião fez com que aumentasse ainda mais essa percepção de diminuição do tamanho do mundo, com o concomitante aumento da velocidade de transmissão das informações.
Heidegger não conheceu a internet. Mas tal meio não foge à lógica de diminuição das distâncias. Hoje, essa tal  diminuição alcançou uma velocidade que beira o instantâneo: se converso via internet com alguém que está no Japão, embora a pessoa esteja 24 hs à frente de mim no espaço-tempo, parece que vivemos um mesmo momento. O telescópio Hubble diminuiu a distância entre as galáxias, a tal ponto que podemos ver até mesmo o passado delas: vemos os sóis ainda em berçários....
A técnica diminui as distâncias, sem dúvida. Contudo, segundo Heidegger, uma coisa é diminuir as distâncias entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade. O telescópio diminuiu a distância entre a lua e meus olhos. Mas quando leio um poema sobre a lua, de que lua se trata? O poema não põe a lua mais perto espacialmente  de mim, porém  ele pode pô-la a tal ponto próxima de mim que a descubro dentro de mim, como o devir-lunar que sou. A mesma coisa pode a música. A toccata e fuga de Bach nos torna mais próximos do infinito do que pode fazer o mais potente dos telescópios. Sob a visão de tal música, também em berçários flagramos ainda os mundos. Recentemente , a Nasa mandou ao espaço nave não tripulada objetivando, quem sabe, estabelecer um contato com seres de outros universos. Nessa nave constavam: um mapa da terra e um CD com a referida música de Bach. O mapa é para os hipotéticos seres virem nos visitar, diminuindo a distância entre eles e nós no espaço. Contudo, a música visa criar proximidade entre a alma deles, se  tiverem, e a nossa, se ainda a tivermos ( pois a nave ainda viajará décadas e décadas antes de alcançar outra galáxia).
A técnica nos torna coisa contígua a coisas, a arte nos aproxima do sentido do mistério que as coisas são. A arte cria proximidade , antes de tudo, com a gente mesmo, por intermédio de realidades que nós mesmos criamos.
Muitos cientistas conhecem tudo das estrelas, e falam delas como se falassem de dinheiro, móveis, bens , automóveis, isto é,  coisas sem intensidade, paixão, vigor, poesia,mistério. Outros cientistas olham as células com potentes microscópios e imaginam que isso os faz estarem próximos do que é a vida, o sentido da vida. Mas basta eles abrirem a boca ou escreverem seus “papers” para vermos o quão longe eles estão, longe da proximidade poético-filosófica com a questão.
Talvez essa ânsia de abolir as distâncias seja um sintoma de uma recusa de proximidade com a vida, com o cosmo, com o outro, enfim, com a própria existência e consigo mesmo. A internet aproxima emissor de receptor, porém não os torna próximos, ela não garante que eles se comuniquem de fato. Às vezes, ao contrário, ela aumenta as distâncias entre as almas, pois de tais distâncias vive o preconceito e o ódio.
No entanto, quando lemos a Ilíada , Moby Dick, ou qualquer outra grande obra,sentimo-nos próximos de alguma coisa, que não é exatamente apenas  Ulisses, Aquiles, Apolo, Atena, a Baleia Branca, o Pescador, o Oceano... Do que tais coisas nos tornam próximos? Quando Cartola nos diz que “as rosas não falam”, que rosas são essas? O que essas rosas têm que não têm as rosas que pomos em jarros? Um dia estas últimas murcham, porém nunca murcham as rosas das quais a canção de Cartola é uma aproximação, um chegar perto: basta a gente cantar que elas desabrocham ,voz.
Posso pegar o avião e ir ao Pantanal tirar fotos e as exibir depois para quem nunca foi lá. Contudo, quando Manoel de Barros nos fala do Pantanal, de qual Pantanal seus poemas são uma aproximação?Quando vou ao Pantanal físico, pego o avião, venço o espaço e o alcanço. Já o Pantanal poético me aproximo dele nos versos, porém nunca o alcanço: é sempre possível estar cada vez mais perto dele, como o agente de uma linha de fuga. O Pantanal poético não é um lugar que existe ao fim do caminho, ele é próprio caminho poético que fazemos ao se aproximar dele. 
Vi recentemente uma versão filmada em 3D de Moby Dick. Que decepção!...Nem toda a parafernália tecnológica  me fez sentir a proximidade da Baleia Branca e seu misterioso oceano tal como  senti quando li a palavra, e fui por ela lido. A palavra produziu o olhar para me aproximar de tais coisas, para assim me aproximar de mim e do universo, e descobrir aquela vida indomável em mim. Ela e seu oceano.
Não se trata de negar a diminuição das distâncias de que a técnica é capaz. Contudo, criar proximidade com realidades intangíveis, mas que também são reais , é tarefa da poesia, da educação, das artes, da filosofia. A tecnologia disso pouco entende...Por isso, tais atividades são indispensáveis, insubstituíveis.
A tecnologia nos impõe o modo de ser dela, ela nada tem de "neutra": o avião nos leva longe, desde que entremos em seu estômago. O telescópio diminui a distância entre nós e as estrelas, desde que façamos nosso seu olho de vidro. O computador nos põe em comunidades virtuais, desde que nossa mente entre em sua caixa. A arte , diferentemente, amplia nosso modo de ser, pois ela é nosso modo de ser mesmo o mais próximo possível da existência, do Ser. 
O que é o Ser? Segundo Heidegger, nenhuma tecnologia nos pode pôr próximo do Ser, pois a tecnologia é, ao contrário,  um afastamento do Ser. Pode parecer paradoxal: o telescópio diminui a distância entre nós e a lua, porém nos afasta de seu mistério, pois a transforma em mero objeto, coisa. Para Heidegger, de todos os meios de que dispomos para nos aproximar da existência, isto é, de nós mesmos, nenhum pode nos colocar tão próximo desse mistério quanto a palavra poética.
 A arte e o pensamento, o sentir e o pensar ,  criam proximidade. A ênfase está no criar como fruto da atividade de pensar: toda proximidade com o sentido é criada, ela não é achada ou encontrada pronta. 












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