segunda-feira, 15 de maio de 2017

a graça II

Quem canta
ora duas vezes.
Santo Agostinho


Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam
Schiller

Li certa vez um conto no qual se narrava a seguinte história: o cenário era a manhã de um dia, uma manhã comum. Não se dizia que era um dia especial: feriado, domingo ou aniversário . Era a manhã de um dia , como todos os dias. A cena se passa em um quarto. Um casal acaba de acordar. Não sabemos ao certo  se são casados, namorados, amantes. Ele ainda está deitado; ela se encontra sentada diante da penteadeira. Ela penteia o cabelo olhando-se no espelho. Ela não se inspeciona, não  critica algum defeito próprio, nem reclama de algo a ser melhorado, tampouco se compara com alguém ausente. Ela simplesmente se olha e se vê. Ela não se idolatra, como fez Narciso. Ela apenas se olha, e não apenas a si se vê. Seu rosto não imagina ou se lembra; ela não está no passado , tampouco se ausenta em uma realidade diferente daquela. Seu rosto, seus gestos, seus olhos, tudo nela é um sim. Um sim àquilo que acontece, como acontece, sem ter um porquê, uma razão, uma explicação. Tudo se basta, se realiza, como tem de ser. Ela cantarola uma canção. Não canta a letra inteira, canta apenas o refrão, o ritornelo,o retorno de um elo, bem baixinho. Mais do que a letra, ela canta o ritmo, tornando-se ela mesmo esse ritmo simples da canção. Assim como esta, ela dura, sem olhar no relógio o tempo dessa duração.
De repente, o namorado a olha. Ele fica vidrado, parece contemplar uma obra de arte perfeita. Não era um quadro, uma peça, um filme ou uma ópera o que ele via. Era mais do que isso, e parece ser a isto que aquelas artes buscam imitar. Era a vida. Não a vida teorizada ou romantizada. Era a vida, uma vida não apenas física, não apenas espiritual, mas a união dessas coisas, bem ali, aqui, e não acolá ou além.  Ela se volta e vê o amado a vê-la. Ela se assusta com a expressão que vê, e pergunta: “-O que foi!?”.  Ele quase salta da cama e lhe roga:
-Repete o que você estava fazendo, faz de novo!                                         
- Mas o que eu estava fazendo? Não estava fazendo nada....
- Você estava se penteando, se olhando, cantarolando...
- Ah...era isso? Nem notei....Era assim?
A mulher tenta repetir o que fizera. Porém , agora eram apenas um arremedo os gestos, uma cópia somente: a cópia de um modelo que se perdeu, junto com aquele tempo idêntico à canção. O homem se limita a dizer que não era assim que ela estava fazendo, que era diferente....Por mais que ela tentasse, o que foi não volta....

Ela não conseguia reproduzir de forma calculada, encenada, prevista, o que acontecera de maneira espontânea, não posada. Contudo, não estava no passado o que se perdera. Estava ali naquele presente, em todo presente que passa. Era uma relação com o presente que presentemente se pensava. A ilusão está em achar que o presente que se vive de tal forma espontânea é aquele que passou e foi se esconder na memória. E que se evocarmos bem esse fantasma, teremos de novo a carne, o osso e o espírito do que foi vivo. Contudo, o que o homem vivera não foi o que se pode evocar como lembrança. O que ele quer é reencontrar aquele presente que parecia não passar, e que está mais na percepção, essa janela do espírito, do que na memória, que é seu porão.
Ela vivera o que se pode  chamar de graça. A graça é o que se recebe sem fazer pedidos e imploramentos. A graça vem quando menos se espera, e vem de graça, sem preço; de tal forma que recebê-la não constitui empréstimo, tampouco dívida. Porém, não se recebe a graça sem achar-se em gratidão. Quem mais é grato mais graça acha nas coisas que o mercado diz serem inúteis e não valerem nada.   Nunca a graça vem quando estamos no palácio ou no pódio. Na verdade, a graça nunca vem, ela sempre está: ela é essa experiência espontânea, inocente, de não mais julgar, medir, contar, objetificar, criticar. A graça é “fazer o nada aparecer”, diz Manoel de Barros. Não o nada de coisa alguma, mas o nada que não é nenhuma coisa, que não é coisa.
Quem vive a graça sabe que a vive, embora não possa conhecê-la enquanto  a vive. Pois conhecer é fazer de um acontecimento um objeto,  é sair do acontecimento enquanto todo indiviso. E quem vê a graça não sabe como agir sobre ela, pois lhe falta a memória daquilo, falta-lhe o conceito, embora não lhe falte o ser. De algo novo não se tem a memória. Na memória está o já visto e vivido, o já experimentado. A graça é a novidade que se dá sem avisar, celestando o ínfimo.
A graça é a própria vida que acontece em nós a despeito de nós não a vermos. Afastar-se da graça constitui a desgraça. Esta não é exatamente o infortúnio do fato trágico, tampouco a desgraça mais danosa é a perda da saúde ou das posses. A pior das desgraças é uma vida mecânica, pragmática, uma vida que se afastou de si própria, e que só vê graça em piadas ou no mero cômico a zombar dos outros.
Conquistar essa graça espontânea requer o abandono de toda ideia de conquista; alcançar essa graça pede que se ceguem os olhos e se cale a boca para tudo aquilo que se via e se falava como certeza e plano de vida.  Quem se acha na graça se encontra, e sempre cantarola uma canção, por mais simples que ela seja.  Não precisa cantar a canção inteira, basta apenas o refrão: que é o retorno de um elo, como ritornelo , que nos liga mais do que  à canção.




(mitologia: As três Graças)







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