sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Wimmer

Não se deve lamentar os mortos:
o que vive uma vez,
vive para sempre.
Joseph Conrad, "Lord Jim"



Nenhuma coisa pode ser destruída, 
a não ser por uma causa exterior.
Espinosa, Ética 3, Prop. IV

Conheci Wimmer há mais de vinte anos. Ele me foi apresentado como alguém que queria ter aulas de filosofia fora do ambiente acadêmico. Ele já contava quase 70 anos. Seu aperto de mão era firme, para não deixar dúvidas acerca do seu caráter, firme também. E nunca ele desviava os olhos enquanto falava,e nem quando ouvia. Ele era firme, de corpo e alma.Ele foi direto ao assunto:“Sou um engenheiro de formação e espírito.Não quero morrer sem saber que coisa é essa a que chamam de filosofia. Tenho pressa,urgência. Podemos começar o curso logo? Ele terá apenas, em princípio, um mês.” Wimmer não era apenas um engenheiro,ele foi um grande engenheiro   que ajudou a construir parte desse país. Aceitei o desafio. Marcamos o começo do que seria o  breve curso para a semana seguinte,na residência dele.
Wimmer  morava em um  apartamento na zona sul  do Rio, com obras de arte por toda parte, tudo expressando um bom gosto.A aula começou logo após o aperto de mão e a oferta de um simpático e muito bem feito cafezinho. Enquanto me ouvia, percebia que havia dentro dele movimentos mentais, havia raciocínios, mediante os quais ele ia refutando Platão ( às vezes apenas mentalmente e em  silêncio,falando apenas com o rosto,  às vezes  interrompendo  e tomando a palavra,posicionando-se criticamente).Wimmer não simpatizou com o platonismo, e foi franco comigo ao demonstrar sua antipatia. O maior de todos os filósofos, segundo dizem, é  isso?Assim me indagava ele com os olhos críticos.
Passei rapidamente  para outras possibilidades do pensar filosófico. Ele considerou interessante os sofistas, demonstrou interesse sincero pelos materialistas, sobretudo os atomistas,e ouviu com muito interesse quando lhe falei da Escola de Epicuro,que lecionava em jardins,em contato com a Natureza.Nietzsche o fez  sorrir pela primeira vez, e  Espinosa  o fez se ajeitar na cadeira. Eu passava por tudo muito rápido, dentro do que era possível.
Wimmer era extremamente  inteligente e lido nos assuntos da ciência. Ele tecia relações entre temas filosóficos e questões da ciência com extrema facilidade, embora às vezes com certo reducionismo, e o alertei para isso, no que ele aceitou. Porém, ao final das quase duas horas de aula  notei nele  certa decepção com a filosofia, com aquela  sucessão de teorias, apesar de ele ter simpatizado com algumas. Até que fechei os livros e as teorias, e tentei abrir o pensamento dele para um problema ,uma questão. Uma coisa é a filosofia, outra o filosofar, o pensar. Mostrei-lhe  que ele já possuía e  exercia,  de alguma maneira, o filosofar, e que este poderia melhorar com o conhecimento da filosofia.
No fim,coloquei a ele um problema,uma questão, fiz-lhe uma pergunta. Perguntei-lhe algo cuja resposta não poderia ser encontrada em teorias ou ciências.Uma pergunta simples, que envolvia mais o pensar a relação com a vida do que teorizar o que a vida é. E ele não encontrou a resposta. Pela primeira vez vi no rosto dele a expressão que somente encontro em  pessoas que aceitam ser aluno. Não é fácil aceitar ser aluno. E somente se torna capaz de ensinar quem também se comporta como aluno:como aluno dos livros que lê, como aluno dos filmes que vê, enfim, como aluno do Acontecimento o qual chamamos de Vida.Aceitar-se aluno, aprendiz ( o que nada tem a ver com ser neófito ou ser passivo),  é talvez  pôr em prática aquela modéstia de que nos fala  Espinosa. "A potência é modesta",confirma Deleuze. Ele percebeu que o limitava  a postura de sempre querer ser professor diante das ideias que precisamos, no entanto, aprender ( Wimmer também era  professor de engenharia). Como ser professor ou ter opinião daquilo que não se sabe?"O aprender vem antes do ensinar",  já nos ensinava Deleuze. Ele ficou então sem resposta : o professor que ele era, e que sempre  tinha as respostas,  ficou mudo, embora eu tenha percebido que algo nele pôde então começar a ouvir. Creio que ele percebeu que não ter a resposta   não era uma carência ou falta ,mas um ganho.Aos 70 anos, já tendo muito ensinado, ele viu a necessidade, idêntica à liberdade, que está no  aprender a aprender.Em tudo o que os filósofos ensinam, às vezes de forma dogmática e rígida, é preciso ver o que eles aprenderam ; e o aprenderam a partir da liberdade que tinham, da sensibilidade que tinham, da alma que tinham.E o que eles aprenderam, e transformaram em teoria e doutrina, não esgota toda a potência do aprender. E é sempre com o novo que se aprende ( há um poema de Murilo Mendes, intitulado "O menino experimental", no qual o poeta diz que um menino que aprende algo novo já refuta, por isso mesmo, tudo o que ensina  a ortodoxia com suas verdades absolutas). Na escola em que os filósofos  aprenderam só existe aluno, como na Escola de Epicuro. E esta talvez seja a “desaprendizagem” de que fala Manoel de Barros como exercício poético , a ignorãça. Pensei comigo: “Ele não vai querer mais aulas, esta será a primeira e última”. No entanto, ao fim da aula ele me cumprimentou e disse:”Vejo você na próxima semana”.
O curso durou três anos. Não sei ao certo em qual momento as aulas se transformaram em uma conversa, em uma “conversação”, como diz Deleuze. Ganhei também um grande amigo naqueles encontros.
Wimmer adoeceu rapidamente de uma enfermidade que  não tinha cura. Ele foi firme e corajoso naquela situação em que muitos  fortes sucumbem ao desespero. Mas nunca o vi lamentar-se da vida.Apesar de doente, muito doente, ele foi à minha defesa de doutorado e se sentou na cadeira da frente.
Quando Wimmer faleceu, sua esposa me confidenciou que ele aceitara que houvesse uma missa ecumênica em sua memória , desde que eu também falasse na ocasião. Wimmer não era exatamente ateu, ele era agnóstico. Quando expliquei para ele certa vez o que era o agnosticismo, ele quase saltou da cadeira e me  disse: “Eu sou isso”.
 Não tive como não aceitar aquele pedido de um amigo,ainda mais  expresso pela boca de sua esposa. A missa aconteceu em uma igreja de Copacabana. Eu e mais sete representantes de diversas religiões nos encontrávamos em uma salinha .Os religiosos olhavam para mim com um olhar intrigado, pois eu estava ali como filósofo e era assim que eu fui apresentado. A porta desta salinha  se abriu e fomos orientados  a seguirmos até o altar. Atravessamos a nave da igreja em silêncio e em fila indiana. Eu era o último. Quando subimos ao altar e nos sentamos, pude perceber o quanto a igreja estava lotada.Parecia uma plantação de algodão, tal a quantidade de idosos que ali estavam,todos com a cabeça branquinha. Então, um a um, cada representante religioso foi chamado para ir até ao púlpito. Primeiro, o protestante; depois,o espírita...e assim foram os demais. Percebi que esses religiosos não conheceram pessoalmente o Wimmer, de tal modo que suas falas seguiam um protocolo, um formalismo,uma cartilha. Chegou então a vez de eu ir ao púlpito. Confesso que nada havia preparado, nem sabia ao certo o que dizer.Falar do agnosticismo do Wimmer!? Nem pensar, não havia necessidade e nem porquê. Falar ali naquele espaço cristão da sua admiração por Nietzsche!?...

Quando pisei no púlpito e olhei para o público ,subitamente me lembrei de um dos afetos filosóficos do Wimmer,lembrei-me de  Espinosa. E falei então de um trecho de Espinosa no qual ele diz que quando a morte leva um recém-nascido, a morte leva a maior parte do que aquele pequeno ser era,mas não leva tudo:algo da criança fica, pois a morte não tem poder absoluto. Mas quando a morte vier levar  aquele que,em vida,ligou-se ao que é eterno, deste a morte levará apenas a menor parte, pois a maior parte ficará : ficará imune ao destruir do tempo ("Ética", proposição 38 da Quinta Parte). Olhei para o rosto da esposa do Wimmer e vi que ali havia aprovação ao que eu disse. Ao fim,alguns vieram falar comigo.Um senhor muito simples, já bem idoso, com indisfarçável entusiasmo  apertou minha mão e disse: “Poxa, eu não sabia que esse técnico do botafogo dizia coisas tão bonitas!...”. Sorri e expliquei para ele que o tal Espinosa não era o Waldir Spinoza, então técnico do botafogo...Ele me pediu o  nome da obra, assim como outros pediram e anotaram,tudo gente simples. E o mais importante para mim:não trai meu amigo.



Nos Jardins de Epicuro,com Wimmer e sua esposa,Maria José:
(imensas saudades do aluno-amigo...)





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