O não-filosófico está talvez mais
no coração da filosofia que a própria filosofia,
e significa que a filosofia não
pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.
Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze
Segundo
Deleuze, a filosofia não é uma prática estritamente conceitual. A filosofia
entra em uma relação direta, sem mediadores, com algo que a antecede. Não se
trata de acúmulo de experiência ou leitura isso que a antecede. Esse “antes” que
antecede a filosofia não é outra disciplina. Esse antes é um “pré”,
um pré-filosófico. Este pré-filosófico não é o conceito, tampouco o bom senso
ou o senso comum. A aurora precede o dia que a sucede.Contudo, esse “pré” com o
qual a filosofia entra em relação não é como um antes que ela, vindo depois,
põe-se no lugar, assim como dia toma o lugar da aurora. Esse pré é sempre pré:
ele não é o conceito ainda se fazendo, tal como o pré-adolescente já é o
adolescente se formando. Esse “pré-filosófico” é uma aurora que nunca deixa de
ser aurora, ou como uma criança apenas criança, e não um adulto incompleto.
O pré-filosófico não é conceitual, jamais o
será.Se a filosofia é o mundo do pensamento, o pré-filosófico é a terra do
pensar, um pensar que também se sente, um sentir que se pensa.Esse pré não é um
objeto que o conceito representa.Ele é uma terra que o pensamento conquista.Conquista
a quem?A filosofia não recebe, de presente, essa terra; tampouco é uma terra prometida. O
nômade que habita o deserto conquista o deserto.Mas o deserto não tem dono,
ninguém pode marcar nele linhas retas em seu solo, pois o vento vem e apaga. Conquistar
não é fazer do conquistado uma propriedade, restando-lhe fora, especulando ou a
deixando deserta de vida. Conquistar é povoar, habitar,encher de vida, mas sem
recortar, sem construir muros. É com itinerâncias, é com trajetos e viagens, é
se movendo sobre o deserto que o Nômade conquista um. O deserto não é nômade,
mas ele torna nômade quem o conquista, povoando-o.
A
terra que a filosofia conquista é um deserto sobre o qual ela traça mundos,
trajetos, habitares, modos de ser, sem que exista, antes, um modelo a imitar de
como ser.Pois antes dessa conquista, antes da terra pré-filosófica, não existe
algo pronto, feito, acabado, que se possa herdar, reproduzir ou imitar.O que
existe é o caos. Este não é um limite à conquista, mas aquilo sem o qual não há
conquista . É a terra o que se conquista, não o caos. A terra tem outro nome: consistência. Ter
consistência não é ser inflexível ou rígido.Ter consistência é conquistar uma
terra sem murá-la, sem fechá-la, sem finitizá-la. Toda conquista é um
co-memorar do que se conquistou. Assim, a terra não é o fim do caos, mas o
começo da consistência.Toda terra conquistada ao caos é sempre terra infinita.A
ciência finitiza, objetifica, gira em torno de objetos. A filosofia traça uma
terra infinita, a qual ela conquista sem negar o caos. Nenhuma conquista nasce
da mera negação, toda conquista é uma afirmação da capacidade que tem o
pensamento de conquistar. Não conquistar prêmios, títulos, propriedade, poder.
Mas conquistar a si mesmo, criando a si mesmo , fazendo do infinito a sua
terra.
A
filosofia não nega o caos, não o demoniza: ela conquista-lhe uma terra.A terra
não é o caos.A terra é o inaugurar de uma distância mínima, que nenhuma régua tem
como medir. Pois não é uma distância mensurável em centímetros, milímetros ou qualquer
outra unidade de medida, por menor que seja. A distância que separa a terra do caos é semelhante
àquela que separa a paisagem pintada e a matéria sem a qual não existe a
paisagem pintada. A paisagem não é a matéria da tinta, mas uma distância não
extensa que o artista conquista, como o fez Cezanne: do caos das sensações ele conquistou uma paisagem que existe como distância não física conquistada à desordem das tintas.
Deleuze chama de “crivo” essa distância que existe entre a terra e o caos. Quanto mais próximo do caos, mais rica a terra que a ele se conquista. Porém, maior se torna também o risco...Quem se aproxima do caos pode nele se perder .E o poeta?
Deleuze chama de “crivo” essa distância que existe entre a terra e o caos. Quanto mais próximo do caos, mais rica a terra que a ele se conquista. Porém, maior se torna também o risco...Quem se aproxima do caos pode nele se perder .E o poeta?
Talvez
o artista, sobretudo o poeta, seja aquele que mais de perto vê o dragão. Nietzsche: “Quando
você olha para o abismo, o abismo te olha”. A terra que o poeta conquista é o
par do caos, é sua fêmea. A terra e o caos vivem um amor que pode matar ou salvar.Não
matar a terra , mas ao poeta que é o produto desse amor, amor este que também o fecunda.O poeta não cria
conceitos como o filósofo: seu pré é imediatamente o caos do qual apenas a
terra inventada pode ser o par.O poeta é o palco desse amor cósmico, tal como o
amor Ariadne-Dioniso.O poeta também vive uma conquista, mas é uma conquista amorosa,
na qual ele aprende a dizer, como Manoel , “eu-te-amo” a todas as coisas.
(Cezanne, A montanha Santa Vitória)
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