Mais importante
do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante
do que o filósofo é o poeta.
Deleuze
Em seu livro
sobre Espinosa[1],
Yovel se refere ao terceiro gênero de
conhecimento do autor da Ética como uma “metamorfose mental”. Antônio Houaiss afirma, por
sua vez, que a poesia de Manoel de Barros está a serviço de uma experiência
clínica: a da “felicidade mental”[2].
A metamorfose poético-filosófica como medicina
animi .
Há uma
influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para
instituir uma medicina da alma ou medicina
animi. Para Espinosa, é absurdo que o homem tenha criado uma medicina
corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina animi,
uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma
delas. O homem pôde produzir a medicina
corporis quando conseguiu vencer o
curandeirismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo. Todavia, no que
diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas
encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse nascer tal salut
e felicidade.
Segundo
Yovel, essa metamorfose mental é a expressão de um "olhar sinóptico",
isto é, um olhar que liga coisas diferentes, coisas estas que não pertencem à
extensão de um mesmo conceito. Parece-nos que esse olhar sinóptico muito
próximo está do que em Manoel é uma visão
fontana. O olhar sinóptico desfaz os limites dos conjuntos extensivos, e
nos faz perceber a singularidade de cada coisa em sua relação com o Todo que se
expressa no coração de cada ente singular e diferente: “é no ínfimo que eu vejo
a exuberância”[3],
“só as coisas rasteiras me celestam : a desgrandeza é de Deus”[4] .
Cada
coisa está conectada à outra através do todo: a vitória está conectada com a
derrota, o acerto está conectado com o erro, a verdade está
conectada com a falsidade, o juiz está conectado com o bandido, a razão
está conectada com a imaginação, a realidade está conectada com o sonho. Estar
conectado não significa estar subordinado, ou que um seja superior ao outro. O importante, o que dá
sentido aos termos de cada relação , é o que está no meio, é a própria relação.
Quando nos colocamos na perspectiva da relação, percebemos que juiz e bandido,
razão e imaginação, acerto e erro, etc., são termos relativos não apenas
uns aos outros, mas relativos à relação que lhes dá um sentido.
Todavia,
afirmar a relação nada tem a ver com defender o relativismo. O relativismo
nasce quando se supõe que bandido e juiz são o mesmo, assim como a verdade ou o
erro. O relativismo geralmente segue de mãos dadas com o ceticismo e o
cinismo, vez que reduz a relação aos termos. Mas quem dá as mãos ao ceticismo
finda por andar em círculos, quem as dá ao cinismo cedo descobrirá que se
encontra sozinho. Somente a compreensão, como diz Espinosa, pode conduzir-nos
pelas mãos e nos levar para onde já estamos. E o lugar onde estamos é sempre o
de uma relação, a começar pela relação de cada um consigo mesmo.
Por
isso, quando nos colocamos na perspectiva da relação afirmamos apenas ela
como necessária, de tal forma que compreendemos que, sob uma outra relação, o
que hoje é bandido pode se tornar um justo, ou o que sob determinada relação é
erro sob outra poderia ser acerto, ou o que sob determinada relação é ensino
pode ser aprendizado sob outra relação. Através da relação e da conexão
cada coisa se liga não apenas a outra que lhe seja oposta, ela se liga também
ao todo e , através deste, a ela própria, para assim mudar, devir,
(re)inventar-se.
Sob
determinada relação, a droga é veneno; sob outra, remédio. Todavia, isto não
significa dizer que ela nunca é veneno .Ao contrário, significa dizer que nem
sempre a droga é veneno, ou que nem sempre a razão é razão: sob certa relação,
a razão pode ser veneno, o juiz pode ser bandido, e o bandido pode ser um
santo. Pensar as coisas sob o viés da relação é pensar como é produzido o
sentido que lhes atribuímos, e que este sentido sempre está inserido em uma
prática que nós mesmos construímos, mesmo que passivamente. Enquanto pensarmos
a relação apenas em termos duais ( juiz-bandido, verdade-falsidade) corremos o
risco de ficarmos reféns das dicotomias e dos discursos que se alimentam
do preto e do branco, do não e do sim apenas.
Na
pintura, o discurso racional sempre se expressou com o predomínio da forma, do
limite, em detrimento da cor. O discurso passional, ao contrário, sempre
realçou a sombra, o claro-escuro, o fundo negro, as trevas...Em ambos os casos,
sempre se colocou a cor em segundo plano. Sabe-o disso não apenas quem pinta :
a cor desborda os limites, bem como introduz uma pluralidade expressiva
irredutível à gramática redutora do preto, branco, cinza e sombra. Pelas cores,
percebemos que a sombra não é a ausência da luz ou o efeito de um princípio
ativo distinto da luz ( a treva). Pois as cores também produzem sombras, como
se o pode ver em Vermeer[5].
O olhar
sinóptico não é um olhar relativista ou que aceita, resignadamente,
que tudo é igual, homogêneo. O resumo de algo às vezes é dito “sinopse”.
Para fazermos a sinopse de um livro ou filme, é preciso que o tenhamos visto ou
lido. Mas quem viu, inteira, a própria vida? Em princípio, somente podemos
fazer a sinopse de um dia que vivemos à meia-noite do mesmo. Essa idéia ,
porém, confunde a sinopse com a reprodução abreviada do que se viveu ou do que
se teve a experiência.
Quem
viu, inteiro, Deus ou a Natureza? A experiência com o infinito nunca pode
terminar, como se termina a leitura de um livro.Quem leu um livro se torna apto
a relatar o que leu. Mas e quem viu Deus ou o Absoluto, do que se torna capaz
de narrar?E deve fazê-lo em prosa? Ou apenas em versos o conteúdo do que viu
pode caber? Manoel de barros nos fala de um “olhar divinatório”[6]: olhar que “celesta” as
coisinhas do chão.
Quando
Espinosa emprega o termo “sinopse” ele está a querer dizer que o infinito está
resumido em cada coisa, por mais simples que seja esta “coisinha do chão”, não
importando se ela é uma vitória ou uma derrota, uma dor ou uma alegria, um
idoso ou uma criança que acaba de nascer. Enquanto vivemos o dia, e o
tomamos mais como algo que passa do que como algo que dura, não
conseguimos experimentar/viver cada parte dele como o resumo dele mesmo. Se a
isto soubéssemos enquanto o vivemos, seríamos como um artista a criar uma obra,
dado que o todo não é um texto pronto,mas uma virtualidade , uma matéria ou
potência a criar. Então, quando à meia-noite fazemos uma sinopse do dia, o
fazemos segundo as possibilidades existenciais daquela parte do dia, e não
segundo toda a potência que foi o dia inteiro. Inclusive, parte dessa potência
que escapa à consciência pode ser melhor resumida e expressa em um sonho
que nos desperta no meio da noite, fazendo-nos compreender algo que não
percebemos durante o dia.
O
que vale para um dia vale igualmente para uma vida inteira: cada momento de uma
vida é um resumo da vida inteira. Quem descobre isso, e o vive, olha não só a
parte,o resumo, mas o todo, o que está sempre a se viver,pois o todo é sempre
maior que cada parte sua, e é maior até mesmo que a soma das mesmas:o
dia que vivemos é maior do que as partes dele que vivemos, assim como é maior
que cada parte dela a vida nossa mesma. É maior não como um pé que não cabe
em um sapato, ou um livro que não cabe em uma bolsa. É maior porque torna
maior cada parte que a expressa, assim como um tom mais vivo de azul
torna mais azul o grau de azul que o expressa. Quando uma parte se liga ao todo
do qual ela é uma expressão, ela se torna maior porque ela,através do todo, se
liga a todas as partes que expressam o mesmo todo: embora única e singular, ela
se descobre ligada ao inumerável que expressa o mesmo todo de mil outras
perspectivas, e nenhuma dessas outras perspectivas é a dela própria, o que
acentua sua diferença, ao mesmo tempo em que a liga e a integra ao todo que é
sua alma heterogênea.O todo não é totalizável, ele não é quantificável: nele
“não se pode passar régua”, ele é uma incógnita.
Cada
parte de uma vida é uma sinopse de uma vida inteira, embora a vida inteira seja
maior do que a mera soma de suas sinopses. De nossa vida inteira vivemos quase
exclusivamente a parte atual, a mesma que a cada momento passa. Mas o que passa
é a parte atual, não a vida inteira, que é sempre virtual. A parte atual é
governada pela percepção, ao passo que a vida inteira somente é experimentada
por uma invenção que a torna deslimitada, idêntica ao gosto superior de viver.
O olhar
sinóptico, porém, não é um olhar da percepção, da memória ou da imaginação:
ele é o olhar da alma que, enfim, se tornou inteira, sabendo-se parte do que é
infinito, e o infinito é a multiplicidade do que existe de infinitas
maneiras. O olhar sinóptico é aquele que vê cada coisa finita como um
resumo singular do infinito, uma vez que o infinito lhe está imanente como
aquilo que nunca a deixa ser finita, limitada. Para ligar cada resumo a outro é
preciso, antes, ter a experiência do todo, e este nunca é um livro ou texto. O
todo é sempre extratextual. Ele se assemelha mais a uma música: não a música
que está em uma partitura ou cd, mas a música que flui, que dura, e que faz de
nós mesmos o seu intérprete, de tal modo que apreender tal música não se faz
sem que criemos e aperfeiçoemos nosso próprio estilo e gosto, tal como o
artista, o músico, que ama tanto o tocar quanto o que precede e prepara o
tocar: o estudo,o treinar,o aperfeiçoar, enfim, o esforço.
[1] YOVEL, Y. Espinosa e outros hereges. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p. 161
e seguintes.
[2] Texto de apresentação presente
na orelha de O guardador de águas
, edição da Art Editora, São Paulo, 1989.
[3] “Desejar Ser”, Livro sobre nada,
p. 55.
[4] Ibid., , p 41.
[5] Cf.HÖRNAK, S. Espinosa e Vermeer:
imanência na filosofia e na pintura . São Paulo: Paulus, 2010.
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