sexta-feira, 11 de março de 2022

as Graças

 

Na mitologia, as Graças eram três irmãs que nunca se separavam. Delas vêm “gratidão” e “gratuito”. As outras divindades se tornavam ainda mais potentes e generosas quando buscavam a companhia das Graças.

Quando Atena, a deusa da sabedoria , andava na companhia das Graças, o conhecimento que vinha dela não apenas instruía  teoricamente , mas deixava também  quem aprendia  em graça, aumentando a potência da vida.

Eros igualmente buscava a companhia das Graças quando queria que o amor que ele dava fosse também um estado de graça: afeto que se dá e recebe , sem cobranças.

E quando os deuses queriam saber quem entre os seres humanos eram gratos, eles ofereciam seus dons junto com as Graças, e assim sabiam quem, aos recebê-los, ficava agradecido . Pois quem é agradecido é confiável.

As Graças não são exatamente a alegria ou a felicidade, pois elas vêm antes desses estados, e muitas vezes são as Graças que nos amparam nos momentos de tristeza e infelicidade.

As Graças são o contrário das Moiras, que também eram três irmãs. Enquanto as Moiras querem nos impor um Destino férreo que se paga com o preço da morte, as Graças ofertam mais  vida de graça, mesmo quando nos julgavam vencidos e mortos. E por esse sopro de vida a mais as Graças nada cobram, apenas esperam  que  nos tornemos gratos. Pois daquilo que se recebe de graça ninguém é o dono ou proprietário: o que se recebe das Graças é para ser partilhado.

Certa vez, Orfeu acordou de manhã e percebeu que Eurídice, seu par, já estava desperta. Ela estava diante de uma penteadeira penteando-se, enquanto cantarolava baixinho uma canção. Ela não cantava a canção inteira, apenas o ritornelo, o refrão.

De repente, Eurídice viu, pelo espelho,  a expressão de Orfeu a olhá-la. Admirado, parecia que o poeta via uma obra de arte a qual não faltava nada.

Eurídice  perguntou: “O que foi!?” E o  poeta pediu: “Não pare, faça de novo o que você estava fazendo!” “Mas o que eu estava fazendo?” “Você estava se olhando, mas sem se julgar ou comparar; você estava cantando sem razão ou motivo, mas como fazia sentido o seu cantar!” “Ah, então era isso!? Farei de novo...”

Porém, por mais que Eurídice tentasse fazer de forma calculada o que fizera de maneira espontânea, ela não conseguia repetir o que vivera de forma gratuita e com graça, sem distanciamento com a vida.

Na Grécia, “Eurídice” é um dos nomes da Alma,  como “Psiquê” e “Pneuma”. Assim, quando o poeta  canta a vida em graça, é porque  sua Alma-Eurídice foi despertada   à vida pelas  próprias  Graças.

O contrário da vida não é a morte. O contrário da vida é a existência in-grata de seres   sem-graça  que atraem  e produzem  des-graças.

Que as Graças nos amparem ,  deem força e nos  protejam  de seres assim.  

 

 

 

“(...)uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...” (Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)

 

 

 

( imagem: "As três Graças"  / Delaunay)








quinta-feira, 10 de março de 2022

pensar não é uma posse, é como as asas que se entregam ao voo

 

Segundo Espinosa, quanto mais realidade possui um ser, mais ele atrai os outros seres de modo semelhante a como o amado atrai o amante. Ao contrário, quanto mais impotente  é um ser , mais ele precisa da mera força bruta para agir sobre os outros seres, sempre encontrando a resistência desses. 

Mas quem ama o pensamento não resiste: entrega-se inteiro  , como as asas que , para serem livres, entregam-se ao voo.

Ainda não descobriu tudo o que pensamento pode quem imagina que ele age sobre nós tal como um bruto nos obrigando à força.

Na verdade, o pensamento é como o amado que nos torna amantes dele quanto mais pelo pensar nos afetamos, desde que ele seja descoberto.

Quem sabe amar, sabe que nunca sabe tudo o que  amor pode. Quem ama o pensamento, não ama apenas o pensamento, ama igualmente tudo aquilo que o pensamento compreende.

Não há ódio pior do que o ódio ao pensamento. Esse ódio recebe o nome  de “ignorância” (em suas diversas formas). E quem odeia o pensamento não odeia apenas o pensamento, também odeia a compreensão e tudo o que pode  alimentar-se dela.

Quem ama o pensamento também ama a realidade que o pensamento conhece e pensa. Quem odeia o pensamento apenas opina sobre a realidade, sendo tal opinião a expressão reativa de um  ódio à realidade e à vida.


"Poesia é voar fora da asa."(Manoel de Barros)

quarta-feira, 9 de março de 2022

ato pela Terra

 

Na mitologia, Gaia, a Mãe-Terra, foi a primeira divindade a surgir: ela emergiu do Caos, tal como uma ilha que sobe do fundo do oceano.

Em seu sentido originário, “Caos” não é a mesma coisa que “desordem”, pois a “desordem” é a negação de uma “ordem estabelecida" , ao passo que o Caos é uma realidade primeira que antecede toda ordem.

O Caos nada destroi: ao contrário, tudo dele nasce. E a primeira realidade a nascer dele foi exatamente Gaia, que os povos originários da nossa América chamam de “Pachamama” ou “Pindorama” ( a nossa "Mátria").

Depois, de Gaia-Terra nasceu Uranos-Céu  e todas as suas incontáveis estrelas.

A Gaia-Terra  permanecia ligada ao Caos por intermédio de suas cavernas. E foi de uma dessas cavernas da Terra, transformada em útero cósmico,  que veio ao mundo Eros, o Amor.

O Amor tem por característica desfazer as fronteiras que individuam e separam  os seres: sob a força do Amor, o dois vira um ( mas sem subtrair , e sim potencializando, o que cada um tem de único).

Assim, sob a força do Amor a Terra e o Céu se uniram: as estrelas do Céu se plantaram no seio da Terra, tornando-se sementes celestes das quais brotaram novas divindades:  Cronos ( o Tempo) ,  Mnemosyne ( a Memória) e  Thêmis ( a Justiça).






terça-feira, 8 de março de 2022

Liliths

 

Adão entrava na escuridão  do sono toda vez que dormia. Certa vez, porém, surgiu no meio do sono  uma imagem difusa que aos poucos foi tomando forma, uma forma de mulher: era Eva.

Um dia  Deus viu Adão falando sozinho enquanto dormia. Deus entrou na alma de Adão e percebeu  que era com Eva que ele falava.

Tomando como modelo o que Adão via em sua fantasia , Deus esculpiu tal imagem  numa das costelas de Adão. E assim ganhou corpo  Eva: a mulher surgida  da fantasia solitária de Adão.

Porém , antes de Eva houve Lilith, que existia  em igualdade com Adão.  Lilith foi expulsa do jardim adâmico por não  aceitar  submeter-se  ao poder de Adão.

E foi assim que Adão sonhou  alguém para moldar à sua maneira e suprir seu desejo de dominação frustrado  .

Eva nasceu do desejo de Adão, ao passo que Lilith era outro desejo tão real quanto o de Adão : Lilith era  plena realidade , e não mero apêndice do homem.  Lilith não nasceu do sonho de poder de Adão, pois ela era a realidade de outro desejo em sua liberdade.

Antes de Eva não havia apenas Adão e Lilith,  também existia  o Amor.  Mas julgando que o Amor inspirava em Lilith o desejo de liberdade e igualdade, Adão estigmatizou o Amor com a  culpa.

Lilith foi  então expulsa  , para que   da  costela do homem fosse  esculpida a mulher dos sonhos de todo patriarcado : “bela, recatada e do lar”.

Mas Lilith  , tal como Afrodite, fazia nascer flores onde pisava:   mesmo quando atravessava desertos ,  nasciam jardins de suas pegadas, pois  o Amor a fecundou antes de ela ser , como Espinosa, excomungada.

Por isso, onde quer que Lilith vá , um jardim libertário nasce dela e cobre de vida a terra. Desse jardim brotam  mais do que flores:  nascem lutas por direitos.

Desse  jardim lilithiano  nasceram  flores singulares com  nomes variados  :  Rosa de Luxemburgo, Frida Kahlo , Lhasa de Sela, Lou Salomé, Nina Simone,  Josephine Baker, Simone de Beauvoir, Tia Ciata, Dandara, Carolina de Jesus, Elza, Marielle... E outras  continuam a florescer , Lilith mais viva do que nunca.






domingo, 6 de março de 2022

HUMANITÁ

 

A palavra “estoico” vem de “stöa”: “porta” ou “portal”. Isso porque os estoicos escolhiam abrir suas escolas de filosofia bem no portal das cidades, perto de sua abertura.

Àquela época, as cidades eram muradas. No centro delas ficavam a praça e o mercado. Platão , fundador da Academia, e Aristóteles, criador do Liceu, estabeleceram suas escolas próximo  ao mercado e guardadas por muros.

Mas os estoicos preferiam dizer que sua filosofia estava a serviço daquilo que não podia ser cercado e murado. Os estoicos queriam  ir além não só dos muros físicos, mas sobretudo dos muros que cercam a alma e a põem prisioneira de si mesma.

A razão em Aristóteles é identificada  ao homem . Mas os estoicos diziam que o pensar é abertura à Terra, aquela que nenhum muro , nem os muros da falocrática razão, separa do cosmos, esse horizonte infinito.

Em vez de glorificar o “Homem”, os estoicos introduzem uma nova ideia: a “humanitá”, palavra feminina. A humanitá não pertence a uma pólis isolada, a humanitá habita a Terra.

Falar no “Homem” como ideia universal é escamotear os seres diferentes dos homens, seres esses que o homem reprime e explora, colocando-se como “Modelo” e “Padrão”. Por isso, a  humanitá não é um Modelo ou Padrão.

O Homem  é definido por Aristóteles como “Animal Racional”, embora tanta irracionalidade vemos na conduta do Homem, na guerra contra outros homens e na predação da natureza. A humanitá não é o “Homem”, ela é comunidade planetária vital.

A humanitá não é uma ideia abstrata , pois ela é também uma prática ética e política de defender a humanidade em nós, protegendo-nos  dos homens que querem destruí-la. A humanidade não é um “Padrão”, ele é uma comunidade aberta e heterogênea.

O Homem tem um rosto: o  do homem hétero,  branco, proprietário, conservador . Esse rosto muitas vezes se coloca  atrás da religião para esconder sua desumanidade contra as mulheres, contra os que não têm a cor de sua pele , contra os que vivem outras formas de amor, contra   os explorados pelo Capital, enfim, contra os que são e pensam diferente.

Mas qual o rosto da humanidade? Em quem podemos ver sua face? O rosto da humanidade somente se expressa em quem se faz singularidade. Singularidade não é a mesma coisa que indivíduo. Uma singularidade é sempre parte de uma multiplicidade. E nenhuma multiplicidade pode ser contida pelos muros excludentes de um Padrão.

 Toda singularidade se torna mais potente quanto mais sua  diferença se amplia em múltiplas e variadas conexões e agenciamentos. Singularidade não é apenas razão, singularidade  também é desejo, criatividade, sensibilidade, corpo  e ação.

Sobretudo, singularidade não é o eu ou o ego, ela é o que em nós se coloca à porta de nós mesmos, abertos à natureza, ao mundo, ao outro, à diferença, no seio aberto da Terra.

A “humanitá”  estoico-latina corresponde  à “paideia” grega, ambas expressando a prática de uma educação não apenas teórica, mas  libertária.

( imagem: “Árvore da vida”/ Klimt)



sexta-feira, 4 de março de 2022

escutas

 

Aristóteles dizia que a matéria mais importante para ser dada às crianças em fase de aprendizagem é a música. Pois com a música a criança dará importância desde cedo ao ouvir: ela perceberá  que o ouvir é meio fundamental de conhecimento.

Quando a criança crescer, ela saberá falar e argumentar bem como cidadão democrático, pois o bom argumentador é aquele que sabe ouvir o outro antes de falar, mesmo que seja para discordar do outro. Em geral, quem fala e argumenta mal é porque  não sabe ouvir.

Os tiranos, por sua vez, dão apenas ordens raivosas porque seus ouvidos são obstruídos à voz diferente do outro. Quem despreza a voz do outro quer sempre ouvir “amém”.

E as “Verdades” dos paranoicos nascem de eles ouvirem  apenas a si mesmos, muitas vezes crendo, delirantemente, que a voz alienada deles é a voz mesma de Deus.  

Quase todas as guerras são mentadas por vozes internas que os paranoicos ouvem ordenando que eles ataquem antes de serem atacados, e muitas vezes os paranoicos creem que essa voz que ordena a violência é a própria “voz da razão”.  

Nietzsche dizia que nossos ouvidos são labirintos nos quais se perdem os tolos que apenas ouvem “para dentro”, escutando somente  a voz reativa do próprio ego. Segundo Nietzsche, somente o Fio de Ariadne , fio vital da arte,  pode nos salvar quando o ouvimos,  inclusive nos salvar de nós mesmos, pois esse fio vem de fora:  fio libertário que vem da Vida e nos leva até ao coração dela.   

Heidegger  ensinava  que o pensar não começa no ego, mas no ouvir a “voz do Ser”. E quem ouve essa voz aprende a ter o que dizer: uns o dizem falando, outros o dizem cantando, e mesmo o silêncio também pode muito dizer. E quem é privado do órgão material da audição  aprende a ouvir com a mente.

Os processos clínicos nos fazem muito falar, para que enfim possamos, com ajuda do terapeuta, começarmos a nos ouvir.

Podem reparar: os intolerantes, os juízes e promotores persecutórios, os machistas, os preconceituosos, os inábeis para a amizade, os ignorantes, os fanáticos de toda espécie, os violentos , os fascistas...Todos esses em geral  falam muito, quase sempre gritando, porém  são surdos existencialmente. Talvez porque , inconscientemente, os desespere o fato de que nada têm a dizer.  

quinta-feira, 3 de março de 2022

diferença entre estender e horizontar

 

Um dos mais famosos teóricos dos meios de comunicação foi McLuhan. Quando eu fazia faculdade, ele era uma espécie de “celebridade” midiática-acadêmica.

Ele formulou a ideia, que aqui simplifico, de que os meios de comunicação “estenderam”  os órgãos de percepção do homem. Com isso, o mundo teria ficado  menor, quase uma “aldeia”.

Por exemplo, o rádio estendeu a voz, de tal modo que o rádio leva nossa voz a ir muito mais longe do que a mera voz que sai de nossa boca. A tevê, por sua vez, estendeu “nossa” visão: em cada parte do mundo a visão pode estar.

Porém, McLuhan  não percebeu que uma coisa é diminuir a distância no espaço entre nossa voz e olhos e a realidade que eles podem alcançar, e outra coisa bem diferente  é dotar nossos olhos com a capacidade de enxergar e nossa voz com a potência de ter realmente o que falar.

E há outro aspecto relacionado com esse primeiro: os olhos estendidos da televisão não são os nossos, a voz estendida do rádio não é a nossa voz. A visão da tevê é a visão do seu dono e proprietário, isto é , o poder do capital e seus interesses. Uma visão assim nos quer mais  cegos do que realmente acontece no mundo do que nos quer enxergando; e a voz estendida do rádio comercial também não é a nossa voz , e muitas vezes essa voz do capital  nos quer calar.

McLuhan viu apenas o começo da internet, porém ele vislumbrava que os computadores  estenderiam nosso próprio cérebro.

Hoje, a internet incorporou voz e olhos ao cérebro cibernético , de tal modo que o mundo virtual se tornou o cérebro, os olhos e a voz de grandes interesses que querem nos alienar do pensar ,com isso nos calando e cegando.

Pensar não é uma questão de algoritmo, mas de inquietação e questionamento acerca da visão e voz que o cyberpoder veicula como se fossem as nossas. Pois o mundo não  ficou menor em sua riqueza e variedade, são  nosso pensar e ver que foram apequenados, reféns de “bolhas”.

De fato, os meios de comunicação estenderam os órgãos da sensibilidade e até mesmo o cérebro. Mas estender não é a mesma coisa que ampliar. Com a  visão teleguiada até às entranhas do local  da guerra não significa que  estejamos  vendo de verdade o que é a guerra, o seu horror e o pérfido jogo de interesses, inclusive o  jogo de interesses de uma mídia que tem lado: o lado do capital alienante-predador.

O que amplia nossa  visão ,  audição,  voz e  pensar são a filosofia, a sociologia , a história, as artes, a literatura... bem como ouvir quem tem experiência de vida, sabendo conjugar crítica, criatividade, afeto, conhecimento e , sobretudo, amor incondicional à vida, assim nos educando. 

Como ensina Manoel de Barros, somente o  pensar e o sentir  críticos e criativos nos horizonta, pois nos coloca próximos existencialmente da vida, aqui e agora. 


(imagem: “Guernica”/Picasso)





quarta-feira, 2 de março de 2022

as duas mãos

 

 Em épocas remotas, um certo ser estranho que mal se distinguia dos primatas pegou o osso de um fêmur e dele fez uma arma. Assim se materializou, pela primeira vez, o poder sob a forma de ameaça de destruição e morte feita a outro ser. 

Essa mesma mentalidade ameaçadora e destrutiva depois se armou com pau,  flecha,  bala,  pólvora,  canhão ,  mísseis...Até chegar ao grau máximo dessa macabra involução : a bomba atômica.

A mão daquele proto-primata que fez do osso uma arma é a mesma  que , hoje, ameaça apertar o botão nuclear. Essa mão perdeu os pelos, as unhas estão cortadas, ela se tornou a mão do homem branco. Mas impulsionando  essa mão saída da manga  de um terno caro está o mesmo impulso cego, irracional.

Mas naquela mesma época primeva outros se valiam das mãos para criarem arte nas paredes das cavernas. Eram os ancestrais dos artistas e educadores.

De um lado, as mãos destrutíferas a serviço  da morte; de outro, a mão criadora-artística afirmadora da vida.

Alguns teóricos “utilitaristas”, quase todos estadunidenses,  consideram que a guerra é o preço a ser pago pelo progresso material da humanidade. Eles elencam  vários apetrechos tecnológicos que “evoluíram” a partir da guerra.

Ou seja,  esses teóricos “pragmático-realistas” consideram que a guerra não apenas destrói, ela também construiria tecnologias que , após a guerra, melhoram a vida do homem no planeta. Em geral, esses teóricos consideram que a mão da guerra, e não a mão artística, seria aquela que , no fim das contas, produziu a “evolução” da humanidade.

Porém, esse raciocínio se mostra absurdo quando se considera o último fruto dessa árvore da violência: a arma atômica. Portanto,  é uma ignorância falaciosa  usar os raciocínios para tentar justificar a existência da irracionalidade, sobretudo essa que hoje ameaça o planeta, seja pela guerra ou   por um sistema econômico desumano-predador, que são as duas faces da mesma moeda da involução iniciada naquele fêmur ameaçador.

A guerra nos mostra que a evolução tecnológica pode estar a serviço de uma involução que  faz o homem regredir a uma mente semelhante àquela do proto-primata, hoje escondida sob a capa de palavras de ordem acéfalas.

A humanidade não começou naquele fêmur levantado em ameaça, ela começou naquelas mãos que transfiguraram a realidade em arte, em linguagem, em cor e forma. São dessas mãos que nasceram a educação, a solidariedade e a empatia. Somente essas mãos podem nos ajudar a vencer as mãos atávicas dos proto-primatas que , de ambos os lados da cerca, ameaçam hoje não apenas a si mesmos, mas a todo o planeta.

as sementes de Lucrécio

 

1- Segundo o poeta-filósofo Lucrécio, os átomos são sementes. Lucrécio não faz aqui uma metáfora, pois os átomos são, de fato, sementes. Essa é a grande diferença entre o atomismo antigo ( do qual Epicuro  e Lucrécio são os maiores nomes) e o atomismo moderno mecanicista, que imagina os átomos como pequenas pedras inertes, mecânicas. A pedra é inerte, porém a semente é vida. Mas por que Lucrécio afirma isso?

Da semente do abacate nasce um abacate, nunca uma maçã;  da semente da maçã nasce uma maçã, jamais um abacate. Tudo o que existe  veio  de uma semente: há sementes das quais brotaram mares, nuvens, plantas, animais e até mesmo as pedras vieram de sementes.

Mas da semente da qual brotaram nuvens não brotam pedras; da semente da qual brotaram  flores não nascem feras.

Com isso, Lucrécio quer afirmar  que a natureza é criativa, tudo ela cria a partir de sementes, sendo as próprias sementes criações dela. A natureza é criativa-produtiva, porém ela não é delirante. O delírio é supor que da semente da maçã possa nascer um abacate, ou que da semente de um pássaro possa nascer um homem, ou que da semente do vinho possa brotar a água, ou que da semente do divino possa nascer ira ou vingança.

O delírio imagina que as coisas podem vir de qualquer coisa ou do nada, e não de sementes.

Da semente de um Cartola nasce sempre Cartola, isto é, música rica de  vida e poesia. Cartola que é, antes de tudo, semente da música. Da semente de Manoel de Barros nasce poesia manoelina, isto é, poesia plural e semente para outras poesias diversas.

Para conhecermos a realidade de algo, é necessário, primeiro, sabermos de quais sementes essa realidade brotou e permanece ainda ligada.

 

2. Lucrécio afirma que as sementes são diversas entre si. Elas são diversamente plurais e infinitas.

“Diverso” não é a mesma coisa que “diferente”. O contrário de diferente é “semelhante”, mas o oposto de diverso é “uniforme” ou “homogêneo”. Além disso, o diferente o é em relação a alguma coisa, ao passo que o diverso o é em relação a si mesmo: só o diverso é semelhante ao diverso, só o diverso produz diversidade, isto é, pluralidade que nunca veste uniformes.

Por isso, é um erro supor que o “clinamen”, o desvio, é segundo em relação à linha reta . Na verdade, o desvio é que  primeiro: o desvio é a origem de todo diverso. A própria natura é diversa de si mesma, por isso ela produz o diverso como semelhança de si mesma.

Não apenas as  sementes são diversas entre si,  também tudo o que nasce delas é diverso, singular. De fato, da semente de uma maçã não nasce um abacate. Mas cada maçã que nasce da semente de uma maçã é sempre uma maçã diversa, composta igualmente de partes diversas entre si.

Como ensina  Deleuze, “com Epicuro e  Lucrécio começam os verdadeiros atos de nobreza do pluralismo em filosofia.” (Lógica do sentido, p. 274)




terça-feira, 1 de março de 2022

Hesíodo, Frida Kahlo , Pandora e a criação da vida

 

Segundo a mitologia, assim foi criado o homem:  Prometeu começou a obra  a partir  do barro, porém  pediu ajuda aos  outros deuses. Hefesto, o deus artesão-operário, deu a Prometeu , para este pôr nos homens, o dom  de usar as mãos. Assim nasceu o “homo faber”: “aquele que transforma a natureza com as mãos”.

Mas isso não foi suficiente , pois as feras sobrepujavam em força e facilmente caçavam esses primeiros homens.

Prometeu pediu auxílio então a Atena. Esta deu a Prometeu, para este colocar nos homens, o dom da inteligência. E assim nasceu o “homo sapiens”:  “o homem capaz de falar,  contar, enfim, teorizar”.

Porém,  o homo sapiens só teorizava, com o homo faber não se unia. Dessa desunião as feras tiravam proveito,   predando facilmente  os homens. Prometeu percebeu que faltava alguma coisa para unir o homem ao homem, o eu ao outro, a identidade à diferença, para assim fortalecê-los reciprocamente.

Prometeu pediu enfim auxílio a Zeus, que ofertou a Prometeu, para este plantar nos homens, a semente do sentimento ético da justiça.

Prometeu preparou então um terreno para plantar essa semente, fertilizando esse terreno com o adubo da coragem. Esse terreno onde a semente da justiça foi plantada recebeu o nome de “coração”.

As decisões que nascessem do coração seriam chamadas de “sentenças”  : “decisões sentidas e proferidas em favor da comunidade”. Zeus fez apenas uma exigência: que essa semente fosse plantada em todos os homens. E assim nasceu o “homo eticus” : “o homem cuja força e poder está em seu coração justo”.

Os homens aprenderam então a cooperar e não apenas a pensar egoisticamente no interesse próprio. Nasceu assim a sociedade. Agindo como ser social , o homem aprendeu a  somar esforços, canalizar as criatividades e reunir meios para vencer as feras com a força da engenhosidade.

Contudo , alguns não confiavam nas sentenças  do coração justo  e resolveram criar  as leis escritas. Outros imaginavam  que não vieram  do barro, e logo começaram a  crer que eram superiores aos outros e “eleitos dos deuses”: propalavam que  não vinham  do barro, mas do ouro .

Entre eles surgiu um tirano que tomou o poder com um exército, rasgou as leis e transformou em escravos os oriundos do  homo faber.  Esse tirano  ainda mandou as covardes botinas do ódio  pisotearem  os corações justos . Assim nasceu  uma elite militar-teocrática pior do que  os leões e  hienas  que antes predavam os homens.

Horrorizado, Zeus pensou em dizimar os homens com um raio. Em vez disso, pegou o barro e o umedeceu com sua saliva. Tomando como modelo Atena e Afrodite, nesse barro foi moldada a primeira mulher : Pandora.

Zeus a enviou ao mundo . Mas dentro de Pandora Zeus não esculpiu totalmente, e foi nesse interior livre que nasceu um aliado do coração justo  na luta contra  a tirania dos homens. Esse aliado foi o  útero, espaço de criação  de algo que , até então, somente  os deuses eram capazes de criar: a Vida.


(imagem: "O núcleo da vida"/ Frida Kahlo)



 

- O texto da postagem é uma interpretação desta obra: