domingo, 1 de outubro de 2023

Manoel : agenciamentos

 

Uma das ideias de que mais gosto é a de “agenciamento”, ela  vem dos filósofos Deleuze & Guattari. É uma daquelas ideias que não se ensina/aprende apenas falando/escutando, e sim   construindo, fazendo.

No coração de agenciamento está a palavra “agente”. Mas o que é um agente?

O agente pode ser qualquer coisa que favoreça um agenciamento. Uma música, um livro, uma paisagem... também  podem ser o agente de um agenciamento.

 Mesmo algo considerado inútil pelo poder dominante pode servir a agenciamentos cuja “utilidade” não se mede em dinheiro. Nem sempre um agente para um agenciamento se mostra evidente. Às vezes, é preciso saber achar um agente para nossos agenciamentos, ou até mesmo criá-lo .

Sobretudo, é necessário  aprendermos nós mesmos a sermos um agente para agenciamentos que potencializem os outros quando eles se encontram conosco. Quando nos agenciamos para mudarmos uma situação social, por exemplo, nos tornamos agentes uns dos outros.

No poema “Aventura”,  Manoel de Barros narra um transformador agenciamento cujo agente  é um simples pote que o poeta encontra jogado fora de "barriga vazia para cima" num lugar ermo.

Não faz muito tempo,  esse pote deve ter sido o centro das atenções: todos  o queriam perto por guardar algo que despertava cobiça e interesse. Talvez ele tenha sido um  pote cheio de   sorvete...

Tamanha deve ser a dor que o pote sente agora, abandonado . Rejeitado pelos homens após estes o sugarem, apenas a natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e regenera, preenche vazios - disso também já sabia Espinosa.

“Inútil”, o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isso que a natureza produz em tudo aquilo que, ao receber os cuidados dela , sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta antes de seguir seu caminho.

Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela imagem triste do sofrimento.

Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco que a natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio, um poema vivo o pote partejou: do ventre do pote um pé de rosas desabrochou...

"Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa lição que  recebeu sob a forma de rosas.E repletos estavam agora o pote e o poeta com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca . 

Esse agenciamento poético-filosófico também nos  lembra o que dizia Plotino:                                                                                                           

         “Quando uma ideia nos fecunda , também sofremos angústia de parto.”







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