sábado, 28 de outubro de 2023

o delírio ôntico

 

Esta história se encontra em La Fontaine ( que aqui interpreto): Atena  ( a Razão)  entrou em conflito com Eros (o Amor ).  Em La Fontaine,  Atena é identificada à Razão que apenas conta, mede e calcula.

Eles brigaram porque , ao decidirem andar juntos, Atena só dava um passo adiante se pudesse   ver, antes , o caminho;  já o Amor gostava de ir por onde não havia trilhas: se à frente havia  um abismo, Eros  abria suas  asas e o atravessava ,  confiando em sua força alada ( em grego, "eros" significa "amor" e também "asas").

Atena, sempre com os  pés no chão, não aprovava esses ímpetos e voos. Desentendidos, a Razão e o Amor brigaram, romperam...

Os deuses do Olimpo  ficaram do lado de Atena. Como punição, Eros foi privado de ver a Luz do Olimpo, tornando-se cego. A luz do Olimpo era como um sol a iluminar o mundo visível onde vivem os homens com suas opiniões e certezas.

Afrodite interveio e pediu a Zeus que fosse dado a Eros ao menos uma bengala para ele poder caminhar. Zeus assim respondeu : “É indigno ao Amor viver apoiado em bengalas e outros tipos de amparo  que não sejam suas próprias pernas e asas.”

Dinheiro, posses, dogmas, poder, segurança...Se o Amor se sustentar nessas coisas, nessas “bengalas”,  atrofiam suas asas.

Zeus não mandou, portanto,  uma bengala para o Amor, e sim um guia:  a “Loucura” . Os gregos chamavam de “Mania”, ou “Loucura Divina”, essa Loucura que guia o Amor.

Embora cego, o Amor passou a ver a partir do coração, pois foi no coração do Amor que a Loucura Divina se instalou. “Divino”, aqui, não significa “religioso”, e sim  algo que transmuta,   potencializa e “empoema” ( diria Manoel de Barros).

 Essa Loucura empoemada deu ainda mais coragem a Eros para  abrir suas asas ( “coragem”: “ação que vem do coração”). Pois  essa   “Loucura” não é uma enfermidade mental negadora da Razão; ao contrário,   ela é  uma força  transmutadora que guia o Amor  a achar  caminhos que a própria  luz da Razão não consegue encontrar sozinha.

É essa mesma “Loucura-Coragem” não resignada   que  guia tanto o poeta  como , no campo pedagógico-político, o revolucionário. Nada muda, indivíduos ou sociedades, sem uma  coragem assim.

O poeta  Manoel de Barros assim chama essa “Loucura”: “delírio ôntico” . Em grego, “on” é “ser”. Enquanto o delírio mórbido, delírio por poder,  é negação da razão,  da vida e da multiplicidade do ser, o delírio ôntico, delírio poético, é afirmação e criação de novos  sentidos para as mil possibilidades que a vida pode ter.

Como também ensina Clarice Lispector: “Se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo.”

 

( o livro de Clarice é apenas uma sugestão)







- A canção original:


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