quinta-feira, 19 de outubro de 2023

a besta...

 

Em seu comentário ao livro “A besta humana”, de Zola, o filósofo Gilles Deleuze fala de alguns  comportamentos hediondos , de ontem e de hoje, identificáveis à  “besta”.

A besta não é um animal determinado da zoologia. A besta é uma espécie de “fundo indeterminado” propagador de (auto)destruição e morte, uma espécie de “buraco negro” que suga e extingue toda forma de luz.

Os instintos  protegem os animais  desse “fundo indeterminado”. Nenhum animal é capaz de cometer ato hediondo ou barbárie inexplicável, pois todos os seus comportamentos são explicáveis pelos instintos.

 A ferocidade do leão, por exemplo, não é maldade ou crueldade, mas um comportamento explicável por sua natureza de leão. Conhecendo essa natureza, podemos agir para evitarmos que essa ferocidade nos atinja.

No homem, o instinto não tem força suficiente  para protegê-lo desse fundo indeterminado . Tampouco pode a inteligência, sozinha, vencer esse “buraco negro”, o ninho onde dorme a besta.

Pois a inteligência , com suas teorias e invenções tecnológicas, é voltada para o domínio do mundo externo, de tal modo que a besta sempre se esconde às suas costas, como uma sombra.

Pode acontecer de a besta se servir dos frutos da inteligência e usá-los como  doentias armas suas : “mísseis  inteligentes”, por exemplo, são a inteligência a serviço da besta e sua necropolítica de extermínio que não poupa nem crianças...

O mundo digital, apesar de fruto da tecnologia avançada, também pode servir à mentalidade obscurantista e atrasada da besta.

Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a “besteira” como antifilosofia, antieducação e anticonhecimento.  A besteira é a besta empregando a palavra para destruir o próprio universo simbólico.

Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras; somente os adultos que são uma besta  podem dizer besteiras que torturam os ouvidos do espírito .

 A besta pode até mesmo se servir da religião, tal como no fanatismo teológico-político  armado de intolerância. A besta pode dominar o Estado, nascendo assim o Leviatã Fascista raivosamente militarizado e genocida.

Quando a besta toma o homem, este se torna um ser irreconhecível , virando um bicho imprevisível que nem  a natureza  explica mais...                                                                                                                                                                                             

Na mitologia, a “Besta” era representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem.  A besta morava num lúgubre labirinto que prendia a todos e parecia não ter saída.

Mas a bestialidade do Minotauro, sua “sede de sangue”,  não vinha do touro, que é herbívoro. A bestialidade vinha da  parte humana  acéfala e doentia ,  que usava a seu serviço a força bruta do touro  .

Além da inteligência, a  vida criou o pensamento. Os instrumentos do pensamento são as ideias e os afetos. O pensar redireciona e amplia a inteligência , tornando-a   também  (cons)ciência planetária.

O pensamento é luz vital que ilumina por dentro e por fora,  brotando da mesma energia que os instintos da vida, porém se potencializando pelo cultivo social  da empatia que agencia , da cooperação que congrega  e da indignação que une os que lutam pela justiça.




Um comentário:

cauepizindim disse...

Há mais de uma década, um compositor uruguaio, Jorge Drexler, fez essa canção que continua atual. É difícil traduzir um sentimento que partilhamos, sem acrescentar um matiz pessoal, então (como se diz: quem conta um conto, aumenta um ponto) espero não "alterar o samba tanto assim".

Canção do Palestino Judeu

"Para cada muro um lamento
Na dourada Jerusalém
De mil vidas despedaçadas
Por cada mau mandamento.

Eu sou pó do teu vento
Embora eu sangre pela tua ferida
Ainda que cada pedra moída
Salve meu amor mais profundo.

Não há uma pedra no mundo
Que valha tanto quanto uma vida.
Eu sou um palestino judeu
Que mora entre cristãos.

Eu não sei qual deus é o meu
Nem qual é o dos meus irmãos.
Eu não sei qual deus é meu
Nem qual é entre meus irmãos.

Não há morte que não me machuque
Não há um lado vencedor
Não há nada além de dor
Em cada vida perdida.

A guerra é uma escola pervertida.
Não importa qual disfarce ela vista.
Sob nenhuma bandeira!
Não convence. Não insista.

Qualquer quimera vale mais
Que um triste pedaço de pano.
Eu sou um judeu palestino
Que vive entre cristãos.

Eu não sei qual deus é o meu
Mas sei quem são meus irmãos
E não dei permissão a ninguém
Para matar em meu nome.

A ninguém dei permissão
Para, em meu nome, matar um irmão.
Um homem que não é nada além
Ou menos que um homem.

E se existe um deus,
É assim que ele quer;
O mesmo chão que eu piso
Chão, vai continuar.

Eu irei embora...
Também caminhando para o esquecimento.
Não há doutrina que não vá;
E não há cidade que não tenha.

Acreditei num povo escolhido,
Eu sou um palestino judeu
Que vive entre cristãos,
Que habita entre irmãos.

Não sei qual deus é o meu
Mas sei quem são meus irmãos
Eu não sei qual deus é meu
Nem quem o é de meus irmãos.

Eu sou um judeu palestino
Que vive entre irmãos."

(robertomarques: tradução livre da canção de Jorge Drexler, Milonga Del Moro Judío)