sábado, 18 de fevereiro de 2023

os estoicos e a "arte de aconselhar"

 

Os estoicos diziam que além de sua parte teórica e de sua parte prática, a filosofia também compreende uma terceira parte ainda, tão fundamental quanto as anteriores. Essa terceira parte é a preceptística[1] : a arte dos conselhos de como agir , sobre si e sobre o mundo.

Enquanto a parte teórica desenvolve  a inteligência, a preceptística auxilia na formação  do caráter. Ou seja, não basta estudar  teoricamente a parte prática ( a ética), é preciso literalmente pô-la em prática.

A preceptística tem dois lados: a fonte na qual são produzidos os conselhos, e os ouvidos aos quais se dirigem esses conselhos. Ouvidos que ouvem como devem ser ouvidos  os conselhos nunca são ouvidos passivos, isto é, nunca são ouvidos habituados a ouvirem apenas ordens. Pois conselhos que visam formar o caráter ( éthos) nunca  são ordens.

É preciso, portanto, um ouvido perseverantemente ativo para apreender  o que ensina o conselho, e uma audição assim    nunca começa e termina  apenas no ouvido, uma vez que essa audição  se liga também às pernas, braços, coração e inteligência, para dessa maneira  agir. É todo o nosso ser que  deve fazer-se ouvido de uma audição que  nos desabre, como ensina o poeta Manoel de Barros.

Mas não basta ouvir   conselhos para tornar alguém filósofo, pois filósofo é quem pode ser fonte de conselhos: não só falando ou escrevendo, mas sobretudo agindo, servindo de exemplo. Os conselhos ouvidos formam, os conselhos emitidos ajudam a formar.

O filósofo é fonte de conselhos porque ele , antes, teve ouvidos para ouvir conselhos que o formaram como filósofo. Essa formação nunca termina, pois o conselho que o filósofo endereça ao outro, antes ele endereça a si mesmo, esforçando-se para  ser o primeiro a seguir aquilo que sua boca fala ou sua mão escreve. Como ensina Plotino: esculpindo a si mesmo, o filósofo nunca termina de fazer sua própria estátua, cujo  modelo não é o próprio ego , mas o universo.

De tal modo que o filósofo sempre mantém atentos e abertos seus olhos e  ouvidos, para assim aprender o que lhe ensinam o  tempo, a vida, a natureza, enfim, o próprio cosmos.

Quando alguém passa de ouvinte de conselhos a fonte dos mesmos, tornando-se assim filósofo? Quando nasce a autoconfiança, ao mesmo tempo potente e modesta, que faz da filosofia não só um estudo, mas antes de tudo um modo de vida.




[1] Sêneca, Cartas a Lucílio, “Carta 94”. Tal como a entendiam os estoicos,  a "física" está implicada na parte corpórea desse aprendizado, já que nosso corpo é parte da natureza.




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