domingo, 26 de fevereiro de 2023

catarses

 

Conversando com uma amiga dia desses revelei que  , apesar do retorno à vida social, ainda não consegui matar a saudade de duas coisas:  lecionar presencialmente (retorno à sala de aula no próximo semestre)  e mergulhar no mar...

Recebi então  um olhar de interrogação acerca desse último ponto. Como nunca perco a oportunidade de filosofar ...rs... , resolvi explicar  porque sinto falta de mergulhar no mar.

Na Grécia  havia um lugar  chamado “Elêusis”. A palavra “elêusis” significa “retorno”. Enquanto os deuses  aristocráticos  moravam no alto do inacessível  Olimpo, “Elêusis” era um lugar no chão, no seio de  Gaia, a Mãe-Terra.

Orfeu ( o Poeta) ,  Perséfone ( o Feminino )  e Dioniso  ( a Arte) eram cultuados em “Elêusis”. Esses “cultos” não eram “religião” , e sim agenciamentos populares nos quais se celebrava  a Vida ( o teatro nasceu desses cultos).

Mas  que tipo de  “retorno” era celebrado em “Elêusis”? Orfeu retornou  do “Reino das Sombras”  após resgatar sua “Eurídice” ( em  Elêusis, “Eurídice” era um dos nomes da alma , assim  como “Psiquê”). Perséfone retornou vitoriosa do cativeiro no qual  Hades , chefe do “Reino dos Mortos”, tentou aprisioná-la . E após ser despedaçado por seus carrascos, Dioniso retornou da quase-morte renascendo do coração ( “Di-oniso”: “aquele que nasceu duas vezes”).

Orfeu, Perséfone e Dioniso venceram a morte e retornaram à  Vida ainda mais vivos. Enquanto a ideia de religião tradicional  implica num morrer nesta vida para “religar-se”   à outra  vida  no “Além”, “elêusis” é um retorno à  vida , esta vida aqui ,  após se ter quase morrido, para assim recriar a Vida  ainda mais potente e forte.

Séculos depois, os estoicos e Nietzsche assim chamaram esse “retornar  à vida para potencializar  a Vida” :  “Eterno Retorno”.

Para quem desejasse  entrar e fazer parte  da comunidade de Elêusis não eram exigidos dogmas  ou dízimo, era pedido apenas  um “ritual de limpeza": era preciso curar-se do veneno que, muitas vezes sem sabermos, envenena nosso corpo e nossa mente, feito uma morte cotidiana que vai nos destruindo  aos poucos.

Esse ritual de limpeza consistia exatamente em “mergulhar no mar”. O sal do mar lava , expurga e  cura.

Esse efeito de limpeza do mar era chamado de “catarse”. Tempos depois , Aristóteles atribuiu à arte essa função clínica e curativa de promover  catarses. Assim como o mar, a arte também limpa ,  sara,  “horizonta”.

Tudo o que realmente ensina,  salva e regenera não pode ser vivido  de longe ou apenas teoricamente , pois requer  que mergulhemos de corpo e alma.

Na falta do mar, sigo aqui mergulhando    em Cartola, em Clarice , em  Espinosa , em Manoel...  e neles buscando  o mesmo  sal.

 

 

( na foto, o poeta Manoel  - que   dizia amar no mar o mesmo que amava no seu Pantanal: os horizontes... )



 



 



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