terça-feira, 12 de julho de 2022

expressionismo cósmico

 

A nave Voyager , enviada ao espaço há mais de 30 anos, ultrapassou as fronteiras  do sistema solar:  ela agora navega  no oceano desconhecido do cosmos. As últimas coisas que a nave  viu não foram  sóis ou estrelas , mas os berçários nos quais estrelas e sóis  nasceram .   A nave é como uma carta que  tem apenas o endereço do remetente :  o planeta terra. E seu destino lembra   o  daquelas mensagens  lançadas ao mar no interior de uma garrafa.

A Nasa colocou um  cd feito de ouro nessa nave. Há sons gravados no cd :  são mensagens com as quais desejamos expressar quem somos  ao cosmos. O ouro foi escolhido pela sua durabilidade,  não pelo seu valor monetário.

Esse disco-cd pode durar até um milhão de anos, tempo superior ao que os cientistas supõem que a humanidade ainda durará.

Daqui a um milhão de anos , talvez sejamos apenas o relato de certo ser estranho já extinto , um mistério a decifrar gravado num disco de ouro.

Estão gravados  no disco , como poéticos testemunhos do que somos e sentimos: sons   de grilo e sapo; uma baleia cantando; as batidas do coração de um recém-nascido, e as primeiras palavras de sua mãe quando ele abre os olhos; o som das ondas cerebrais de uma jovem que acabou de se apaixonar; um cão  latindo feliz com o retorno à casa de seu amigo-dono; o estalar  de um beijo; sons de chuva e vento; o ribombar de um trovão ; o estrondo de um vulcão que acaba de acordar; risos de crianças brincando; o som suave de uma página de livro sendo folheada; e um “bom dia” dito em  diferentes línguas e dialetos, feito uma  multitudo sonora.

Daqui a um milhão de anos,   talvez já  tenha virado pó tudo o que o dinheiro hoje compra; e apenas pó também sejam  o Paraiso e o Inferno  que os fanáticos teológico-políticos vociferam e em nome dos quais nos ameaçam com  suas fogueiras ( literais e simbólicas).  Mas  para que  durem ainda muito nossas vidas, que não tarde o dia em que  virarão  pó o obscurantismo e a necropolítica.

O poeta Manoel de Barros dizia :“ poderoso não é quem descobre ouro, poderoso  é quem descobre as insignificâncias”. As “insignificâncias” são pequenos acontecimentos vitais cuja grandeza é ignorada pelos homens e suas “importâncias”. Naquele disco da nave estão gravadas “insignificâncias”  endereçadas a  olhos cósmicos .

Talvez sejam esses mesmos olhos que, no aqui e agora, abrem-se no  poeta :  alguém que vê essas “insignificâncias” e as  eterniza como palavra poética que faz pensar, sentir e educa. São essas insignificâncias sentidas , vividas  e partilhadas a verdadeira riqueza daquele disco de ouro que enviamos à eternidade.

 

(na imagem, a primeira foto do universo enviada pelo telescópio James Webb junto a uma   pintura expressionista de Pollock, ambas parecendo expressar o mesmo estilo e arte. Nome da obra de Pollock : “Reflexões sobre a estrela Ursa Maior”, de 1947)




 

- com tradução:




  

- Insignificâncias manoelinas = as coisas favoritas que Coltrane musicou:



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