quinta-feira, 29 de junho de 2023

artigo: pop'filosofia e pop'educação

 

Amigas & amigos. Escrevi um artigo para esta revista. Postarei aqui um trecho do artigo. Para quem quiser ler o artigo completo, deixarei o link . 


Este texto se apoia e  procura ampliar o seguinte pensamento  de Espinosa: “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”. Mas o que Espinosa quer dizer com “corpo”? Ele não se refere apenas ao corpo orgânico ou biológico, tampouco às dimensões tangíveis mensuráveis com régua. Um pintor nos mostra, pintando, que ninguém sabe tudo o que o corpo da cor pode, até com ela  criar uma obra nova; o músico nos ensina que ninguém sabe tudo o que pode o corpo do som, até compor uma música nunca antes ouvida; ninguém sabe tudo o que pode o corpo social, sobretudo quando se afirma como multiplicidade instituinte; ninguém sabe tudo o que pode o corpo da palavra , até o poeta reinventar-se nela: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”, ensina o poeta Manoel de Barros.


Segue o link :


https://periodicos2.uesb.br/index.php/aprender/article/view/11674



Ao explicar sua noção de  pop'filosofia, Deleuze cita Bob Dylan como um pop'pensador:




Sérgio Sampaio é um pop'pensador brasileiro que merece ser mais conhecido:



quinta-feira, 22 de junho de 2023

Perséfone e a chegada do inverno

 

Segundo a mitologia, Hades é a divindade que habita a região trevosa muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.

Certa vez,  Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de Cronos, o Tempo, com Cibele, a divindade  da fertilidade.

E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a deusa cuja arte é fazer nascer flores. Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores.

Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa, pois ninguém imaginava que pudesse nascer em Hades um desejo por cores.

Num ato condenável, ele raptou  Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.

Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e beleza, de pão e poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava .

Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone subiria para viver entre nós,  sua chegada nos  trazendo a primavera.  Durante outra parte do ano, uma parte  doída para nós, Perséfone viveria lá embaixo . Desta maneira nasceu o inverno: o período em que Perséfone desce para ir morar com Hades.

 Mas para nos confortar um pouco e minorar a tristeza pela sua ausência, Perséfone criou flores que florescem no inverno. Foi assim que nasceram a Tulipa, a Angélica , o Crisântemo , a Orquídea e o Lírio.

Ontem  começou o inverno. Perséfone nos deixou...

Ainda bem que pode nos socorrer e acalentar outra narrativa originária  , uma narrativa de autoria do povo  tupi-guarani, cujo sangue também corre nas nossas veias. Para esse povo, o   ipê  é  a árvore-filha mais potente e perseverante de Pindorama, a Mãe-Terra;  pois o ipê é capaz de florescer o ano inteiro em resistente primavera, mesmo sob o inverno.

“Árvore da Vida”, assim nossos povos originários chamam  o ipê. Nem o inverno , nem os vis predadores armados com  motosserra  impedem o ipê de dizer , florindo,  o que  o poeta Goethe disse em versos: “O céu da teoria é cinza; mas sempre verdejante é a árvore da vida.”

 

 

 

(imagem: “Roots” /“Raízes”, de Frida Kahlo)





sexta-feira, 16 de junho de 2023

o antifilósofo

 

Platão elaborou  uma tipologia com nove tipos de  almas que podem ter os seres humanos . Tal  tipologia era apresentada sob a forma de uma escala:  do ser humano mais nobre ao mais vil. A nobreza, no caso, não era devido à família ou  posses. Mas que nobreza seria essa?

Valendo-se de alegorias para se expressar ( pois as alegorias servem para tentar dizer o que não é apenas palavra), Platão dizia que o ser mais nobre é aquele que possui uma forma especial e rara de asas , asas que permitem elevar, para assim nos transportar  até o lugar   onde vivem as Ideias. Porém, não é a razão a dona dessas asas, a razão é apenas os “olhos que veem” as Ideias. Sozinha, entregue apenas às suas teorias e raciocínios, a razão não tem força para  nos elevar.

 As asas que conduzem  às Ideias pertencem a um “Daimon”: Eros, o Amor ( em grego, “eros” também significa “asas”). Somente consegue chegar bem perto das Ideias, e ficar face a face com elas, aquele em cujas costas não há peso e sim asas , como as asas do beija-flor que o põem diante de seu néctar.

Enquanto Daimon (  ser que auxilia nas travessias ), Eros   é a  força  do Afeto transmutador . Assim,  mais nobre é o ser cujas asas têm força para conquistar proximidade com as Ideias. A alma mais nobre, segundo Platão, é a alma do pensador.

Mas as asas de Eros não são como as de Ícaro, cujas asas eram artificiais e colocadas com engodo: asas que fazem subir apenas para aumentarem o tamanho da queda. As asas de  Eros também não são como as dos pássaros, pois estes já nascem com asas. As asas de Eros eram como as da borboleta:  asas que nascem  de uma  metamorfose.

O segundo ser na  escala é o  que busca a justiça; o terceiro é aquele  que cuida da saúde do corpo; o quarto é o que tem engenho e arte... E assim segue Platão descrevendo e enumerando os tipos de seres humanos.

O penúltimo em tal escala ( o oitavo, portanto) é aquele que usa as palavras não para ensinar, mas para iludir e enganar, como os que hoje fabricam “fake news” . Por isso, quem assim procede está mais perto da vileza do que da nobreza. Segundo Platão, esse penúltimo na escala é  o ardiloso sofista. Os sofistas  prometem asas, porém asas  artificiais como as de Ícaro.

E o último ser nessa escala, o homem mais vil, é aquele que possui a alma de tirano. Platão dizia que devemos manter o tirano longe   da educação dos jovens e mais distante ainda do governo da sociedade. O tirano recebe também outro nome:  “antifilósofo”.

Todo tirano , ou antifilósofo,  é cego às ideias e cultua a ignorância , o ódio e a servidão voluntária. O tirano não tem asas, o tirano é peso soturno que, chegando ao poder, ameaça afundar a sociedade no abismo.








quinta-feira, 8 de junho de 2023

manoel e os delírios ônticos

 

Segundo o poeta-pensador Manoel de Barros, a poesia libertária que afeta e faz pensar é  sempre “delírio ôntico”.  A palavra “delírio” vem de “de-lira”: "fora da lira".

Na Grécia, a palavra “lira” designava , ao mesmo tempo, o nome do instrumento musical tocado por Orfeu, o poeta originário, e também os sulcos paralelos feitos na terra para se plantar uma semente. Os sulcos paralelos na terra lembram as cordas paralelas da lira.

Porém, há dois tipos de delírio: o mórbido-destrutivo-doentio e o poético-criativo-pensante.

Quem delira morbidamente , como no delírio autoritário por poder, lança suas ideias e palavras fora da lira, fora dos sulcos : nada germina de tais palavras e ideias. É por isso que delirantes assim recorrem à violência, física ou simbólica, para tentarem se impor.

Mas com o delírio poético-criativo-pensante  é diferente : às vezes , um criador-pensador cria uma ideia-semente tão nova e potente que ela não cabe nos sulcos antigos, sendo necessário criar novos sulcos para a ideia-semente nova ser lançada e cuidada , tal como uma sinapse-sulco  nova na qual germinará um pensar novo que educa , emancipa e horizonta a mente.

Em grego, "on" é  "ser" ( de onde nasce "ontologia":  “estudo do ser”). Assim, o "delírio ôntico", ao contrário do delírio mórbido, é prática poética-filosófica de criar novos sentidos para o viver.

 

"O Chapeleiro:

- Estou com medo, Alice. Não gosto daqui!

Minha cabeça está cheia... Será que sou louco?   

Alice:

- Receio que sim, você é louquinho...

Mas vou lhe contar um segredo: as melhores pessoas são."


(Trecho de “Alice no país das maravilhas”, fruto dos delírios ônticos de Lewis Carroll)

 

( Perdoem-me citar a mim mesmo  através do  livro que acompanha a postagem, juro que não é narcisismo...rs...É que a capa expressa , por imagem, o que tentei dizer  no texto da postagem:  espinosisticamente  perseverante, a vida sempre acha um sulco improvável  por onde germinar , mesmo onde parecia impossível,  tal como a folhinha-broto  produzindo  sua “linha de fuga” através da fenda)




 




domingo, 4 de junho de 2023

as Graças...

 

                              AS GRAÇAS [1]

 

 

“(...)uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...”

(Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?)


"Somente os seres humanos livres são gratos uns aos outros."

(Espinosa)

 

 

Na mitologia, as Graças eram três irmãs que nunca se separavam. Delas vêm “gratidão” e “gratuito”. As outras divindades se tornavam ainda mais potentes e generosas quando buscavam a companhia das Graças.

Quando Atena, a deusa da sabedoria , andava na companhia das Graças, o conhecimento que vinha dela não apenas instruía  teoricamente , também  deixava quem aprendia  em graça, aumentando a potência da vida.

Eros também buscava a companhia das Graças quando queria que o amor que ele dava fosse também um estado de graça: afeto que se dá e recebe , sem cobranças.

E quando os deuses queriam saber quem entre os seres humanos era grato, eles ofereciam seus dons junto com as Graças, e assim sabiam quem, aos recebê-los, ficava agradecido . Pois quem é agradecido é confiável.

Platão, por sua vez, dizia que não se pode ser filósofo sem quatro aspectos conjugados : memória do que não pode ser esquecido, desejo de aprender sempre mais, coragem para agir e graça[2].

As Graças não são exatamente a alegria ou a felicidade, pois elas vêm antes desses estados, e muitas vezes são as Graças que nos amparam nos momentos de tristeza e infelicidade.

As Graças são o contrário das Moiras, que também eram três irmãs. Enquanto as Moiras querem nos impor um Destino férreo que se paga com o preço da morte, as Graças ofertam mais  vida de graça, mesmo quando nos julgavam vencidos e mortos. E por esse sopro de vida a mais as Graças nada cobram, apenas esperam  que  nos tornemos gratos. Pois daquilo que se recebe de graça ninguém é o dono ou proprietário: o que se recebe das Graças é para ser partilhado.

Certa vez, Orfeu acordou de manhã e percebeu que Eurídice, seu par, já estava desperta. Ela estava diante de uma penteadeira penteando-se, enquanto cantarolava baixinho uma canção. Ela não cantava a canção inteira, apenas o ritornelo, o refrão.

De repente, Eurídice viu, pelo espelho,  a expressão de Orfeu a olhá-la. Admirado, parecia que o poeta via uma obra de arte a qual não faltava nada.

Eurídice  perguntou: “O que foi!?” E o  poeta pediu: “Não pare, faça de novo o que você estava fazendo!...” “Mas o que eu estava fazendo?” “Você estava se olhando, mas sem se julgar ou comparar; você estava cantando sem razão ou motivo, mas como fazia sentido o seu cantar!” “Ah, então era isso!? Farei de novo...”

Porém, por mais que Eurídice tentasse fazer de forma calculada  o que fizera de maneira espontânea, ela não conseguia repetir o que vivera de forma gratuita e com graça, sem distanciamento com a vida.

Na Grécia das tradições órficas, “Eurídice” é um dos nomes da Alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Quando o poeta  canta a vida em graça, é porque  sua Alma-Eurídice foi despertada   à vida pelas  próprias  Graças. No poeta, é a alma que muitas vezes desperta, em graça, antes mesmo de ele abrir os olhos.   

O contrário da vida não é a morte. O contrário da vida é uma existência sem-graça que atrai e produz des-graças. Uma existência assim é anti-poesia: com tudo e todos,  ela é não confiável,   in-grata.

 

( imagem: "As três Graças"  / Delaunay)





[1] Texto elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Mesmo Platão também dizia que  a condição de filósofo  requer graça, pois  a ignorância , em suas diversas formas, é a pior das des-graças...




sexta-feira, 2 de junho de 2023

zaratustra & manoel

 

Há uma passagem do livro “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, na  qual Zaratustra cede às lamúrias de um anão que o seguia.

 É preciso entender “anão”, aqui, não no sentido literal. Em Nietzsche, o “anão” simboliza um ser reativo portador de pequeneza de alma e de visão.

Nesse sentido nietzscheano, é sempre um anão existencial e de espírito quem tem visão estreita, mesmo que possua 1,80 de altura ( como no modelo de homem ariano-militarista  propagado pelos nazifascistas, os de ontem e os de hoje).

Queixando-se ressentidamente, o anão suplicava para que Zaratustra o carregasse nos ombros. Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra.

 Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem.

Porém  não avançou muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos esses que o anão acreditava ver logo ali adiante. Zaratustra, contudo, nada via.

O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo destino dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar aos carrascos perdão.

Zaratustra já se inclinava para prostrar-se  derrotado  quando, de repente, um grito veio de dentro dele e, indignado,  protestou : “Pera lá, anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas pernas curtas!”.

Livrando-se das seduções  da autopiedade resignada, Zaratustra  expulsou o anão de suas costas. Foi a voz da vida,  da vida que resiste e avança, que protestou contra a resignação apática e derrotista  que já tomava conta do querer de Zaratustra.

Às vezes, essa voz da indignação precisa fazer-se   alta para acordar quem dorme para a vida. Quando são as coletividades que dormem, disso se aproveitam as tiranias...  

Nos já despertos, porém, essa voz que acorda sabe fazer-se canto de afetos revolucionários, como nos versos da poeta chilena Violeta Parra;  ou até mesmo se transfigurar em assobio  libertário,  como em Manoel de Barros:  “o andarilho abastece de pernas as distâncias”, ensina-nos o poeta enquanto avança com seus passos firmes e perseverantes , passos acompanhados  de um olhar  que , horizontando-se, nos ajuda a ver  longe.





Letra-poema de Violeta Parra:




quinta-feira, 1 de junho de 2023

guerrilha semiótica

 

Os jornais surgiram na Europa como espaços críticos e simbólicos da então emergente  burguesia  . Os jornais nasceram como voz de uma classe contra outra classe: como voz da burguesia contra a monarquia.

Depois, com os movimentos operários, surgiram jornais de esquerda como voz dessa nova classe nascente. Até hoje na Europa, há jornais de esquerda que fazem contraponto aos jornais liberais hegemônicos que , tal como no passado, ainda defendem o interesse de uma determinada classe, ainda que tentem dissimular isso.

No Brasil nunca houve algo semelhante: aqui, a imprensa foi criação da monarquia, quase como uma porta-voz dela. Os primeiros jornalistas eram filhos de senhores de engenho. Nunca tivemos, a não ser isoladamente , uma imprensa que tivesse outra voz sem ser a voz da classe dominante. Hoje, os senhores de engenho são outros...

 Um empresário estadunidense ultradireitista , ferrenho apoiador e financiador  de Trump, recentemente disse com cinismo: “Marx estava certo, o motor da história é a luta de classes.  Só que agora somos nós, os ricos, que fomentamos a luta e avançamos  contra  nossos inimigos:  os pobres.”

Com raríssimas exceções, a atual imprensa brasileira tornou-se um instrumento não de crítica , mas de ódio de classe a serviço desse tipo de  mentalidade que tem por aqui suas versões. E se um governo tem por desejo auxiliar de alguma forma os pobres, o ódio contra ele  será ainda maior...

Some-se a esse triste quadro o fato de que boa parte da mídia que chega ao povão está nas mãos de igrejas que têm um projeto de poder teológico-político.

Não há como mudar esse quadro a não ser exercendo o que Umberto Eco chama de “guerrilha semiótica” :  um espaço de contrapoder que dê voz às falas minoritárias e heterogêneas .

Pois nunca a voz da diferença e da potência singularizante  será voz dominante , ela será sempre voz plural cuja tática deve ser  a da guerrilha semiótica cujas armas são as ideias e afetos libertários.

sábado, 27 de maio de 2023

as rosas de Cartola e a lua crescente de Van Gogh

 

Segundo o filósofo  Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A tecnologia  diminui as distâncias, sem dúvida. Mas  uma coisa é diminuir a distância entre seres no espaço ( espaço presencial ou virtual), outra bem diferente é criar proximidade com o sentido íntimo das coisas.

O ChatGPT diminui a distância entre nossa mente e as informações depositadas na web, porém não creio que ele crie proximidade existencial  com o pensar enquanto potência singular da mente.

O telescópio diminui a distância entre a lua e nossos olhos, isso é fato. Porém, quando  lemos o poeta  Manoel de Barros  falando  sobre a lua em seus versos , o  poeta não põe a lua perto  de nós  no espaço, mas  ele a põe  a tal ponto próxima que, empoemando-nos,   experimentamos   seu sentido também  em nós,   no  "devir-lunar" que vivemos e nos tornamos.

E a  lua crescente que Van Gogh pintou não é para ver com telescópio, mas com olhos que sejam em nós também expressão da  vida criativa  crescente.

Quando Cartola canta  que “as rosas não falam”, qual o sentido dessas rosas? O que elas  têm que não têm as rosas que pomos em jarros? Um dia,  as rosas do jarro  murcham, como tudo aquilo  que a arte não salva; porém , nunca morrem as rosas que a canção de Cartola nos põe próximos , a salvo. E basta a gente cantar , estejamos alegres ou tristes, para que essas rosas  desabrochem   em nossa voz como arte que, apesar de tudo,   resiste.

 

 

“Não sou da informática, sou da invencionática”. (Manoel  de Barros)

“Só a arte salva.” ( Deleuze)

 

(Imagem: “Paisagem com casal passeando e lua crescente”/ Van Gogh)






quinta-feira, 25 de maio de 2023

geopoesia

 

Um dos meus versos preferidos  de Manoel de Barros é aquele no qual ele diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”. O coração desse verso é a palavra “fazer”. Não por acaso, o sentido original de poesia é “fazer” ( “poiésis”).

Infelizmente, nem sempre é ensinada nas escolas e academias essa relação   umbilical e imanente entre “poesia” e “fazer”. Isso se deve  a duas questões que estão interligadas: 1- certa visão romantizada da poesia; 2- uma concepção  estreita do “fazer”, identificando-o  com  o mero   utilitarismo   “objetivista” e “mercadológico” que se diz “neutro politicamente” , e que só crê ter  valor aquilo no qual se pode pôr um preço.

Porém, não há prática “neutra”, toda prática é política: por isso, sempre são úteis  aos piores poderes as práticas que se dizem “apolíticas”.

Desse utilitarismo rasteiro, inclusive,  nasce uma ideologia tecnicista  que, de mãos dadas com os negacionistas da política, estão sempre ameaçando com suas cicutas a vida pensante que ainda lhes resiste nas escolas e academias.

Mas poesia é prática não só de criar versos, ela também é ação de produzir novos modos de vida. E todo modo de vida pressupõe uma terra. Não há modo de vida concreto que se construa esperando por outra vida no   “Céu”, pois todo  modo  de vida pede uma terra aqui e agora para ser ocupada ,  vivida e cultivada, para dela ser extraído  não só o pão que alimenta o corpo, mas igualmente  o pão que alimenta o espírito.

“Companheiro” vem de “com-panis”: "aquele com quem dividimos o pão ( panis)". Tornam-se companheiros aqueles que aprendem a dividir os "dois pães": o pão que vem do trigo cultivado na terra e o  pão que nasce do afeto partilhado nas lutas coletivas por dignidade, arte e educação . Esse último pão cresce e se multiplica quanto mais nele pomos o fermento da consciência social crítica , ativa e solidária.

Como mostra o belo livro “Sem terra com poesia”, a luta pela terra também se faz com poesia. Não há como fazer outro mundo, outro mundo em todos os sentidos, mundos sociais e subjetivos, sem compreendermos  que a poesia autêntica é sempre construção de mundos: mundos que sejam, antes de tudo,  uma  terra plural sem cercas , uma terra horizontada como resistência ativa  ao agro-fascismo e seus cúmplices.




 



domingo, 21 de maio de 2023

a tangente

 

Manoel de Barros define sua poesia como uma “Estética da Ordinariedade”.  Mas a “ordinariedade” de que fala Manoel nada tem a ver com o   “ordinário” das coisas ética e politicamente infames. 

Curiosamente , a  ideia de “ordinário”  vem da matemática, assim como  a noção de “extraordinário”. Na matemática, os “pontos ordinários”  de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários” ou “singulares” localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: os que ocupam os extremos da linha.

Mas  a relação  entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Tal figura geométrica parece destituída de pontos extraordinários ou singulares. Geralmente se  costuma dizer que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?

Porém  o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma “tangente”.

“Tangente” significa: “ o que toca ou afeta”. Na matemática, a tangente é uma linha que , vindo de fora, toca o círculo, compartilhando com ele um mesmo ponto, abrindo-o.

Na vida há tangentes também: uma tangente pode ser qualquer coisa que, como “linha de fuga”,  potencialize o sentir e  o pensar, desabrindo-os. Em Manoel de Barros, “desabrir” é abrir-se para horizontes , externos e internos.

“Linha de fuga” não é fugir de algo, mas fazer fugir algo que estava aprisionado : ao desfiar  o uniforme de louco que o poder normalizador lhe punha, Arthur Bispo do Rosário queria encontrar o fio que o uniforme aprisionava , para assim libertar o fio da forma acostumada, libertando assim a si mesmo,  e com o fio livre  bordar sua história nunca antes contada.

 Um fio assim se torna linha de fuga e tangente para bordar Potências expressivas que também se tornam remédios  para a saúde da mente.

 Toda tangente abre o que está fechado, deixando entrar luz, ideia  ou ar.  No encontro da tangente  da poesia com o círculo de nossa vida , este é tocado e se abre, o suficiente para um pouco de  vida de novo entrar.