domingo, 4 de junho de 2023

as Graças...

 

                              AS GRAÇAS [1]

 

 

“(...)uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...”

(Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?)


"Somente os seres humanos livres são gratos uns aos outros."

(Espinosa)

 

 

Na mitologia, as Graças eram três irmãs que nunca se separavam. Delas vêm “gratidão” e “gratuito”. As outras divindades se tornavam ainda mais potentes e generosas quando buscavam a companhia das Graças.

Quando Atena, a deusa da sabedoria , andava na companhia das Graças, o conhecimento que vinha dela não apenas instruía  teoricamente , também  deixava quem aprendia  em graça, aumentando a potência da vida.

Eros também buscava a companhia das Graças quando queria que o amor que ele dava fosse também um estado de graça: afeto que se dá e recebe , sem cobranças.

E quando os deuses queriam saber quem entre os seres humanos era grato, eles ofereciam seus dons junto com as Graças, e assim sabiam quem, aos recebê-los, ficava agradecido . Pois quem é agradecido é confiável.

Platão, por sua vez, dizia que não se pode ser filósofo sem quatro aspectos conjugados : memória do que não pode ser esquecido, desejo de aprender sempre mais, coragem para agir e graça[2].

As Graças não são exatamente a alegria ou a felicidade, pois elas vêm antes desses estados, e muitas vezes são as Graças que nos amparam nos momentos de tristeza e infelicidade.

As Graças são o contrário das Moiras, que também eram três irmãs. Enquanto as Moiras querem nos impor um Destino férreo que se paga com o preço da morte, as Graças ofertam mais  vida de graça, mesmo quando nos julgavam vencidos e mortos. E por esse sopro de vida a mais as Graças nada cobram, apenas esperam  que  nos tornemos gratos. Pois daquilo que se recebe de graça ninguém é o dono ou proprietário: o que se recebe das Graças é para ser partilhado.

Certa vez, Orfeu acordou de manhã e percebeu que Eurídice, seu par, já estava desperta. Ela estava diante de uma penteadeira penteando-se, enquanto cantarolava baixinho uma canção. Ela não cantava a canção inteira, apenas o ritornelo, o refrão.

De repente, Eurídice viu, pelo espelho,  a expressão de Orfeu a olhá-la. Admirado, parecia que o poeta via uma obra de arte a qual não faltava nada.

Eurídice  perguntou: “O que foi!?” E o  poeta pediu: “Não pare, faça de novo o que você estava fazendo!...” “Mas o que eu estava fazendo?” “Você estava se olhando, mas sem se julgar ou comparar; você estava cantando sem razão ou motivo, mas como fazia sentido o seu cantar!” “Ah, então era isso!? Farei de novo...”

Porém, por mais que Eurídice tentasse fazer de forma calculada  o que fizera de maneira espontânea, ela não conseguia repetir o que vivera de forma gratuita e com graça, sem distanciamento com a vida.

Na Grécia das tradições órficas, “Eurídice” é um dos nomes da Alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Quando o poeta  canta a vida em graça, é porque  sua Alma-Eurídice foi despertada   à vida pelas  próprias  Graças. No poeta, é a alma que muitas vezes desperta, em graça, antes mesmo de ele abrir os olhos.   

O contrário da vida não é a morte. O contrário da vida é uma existência sem-graça que atrai e produz des-graças. Uma existência assim é anti-poesia: com tudo e todos,  ela é não confiável,   in-grata.

 

( imagem: "As três Graças"  / Delaunay)





[1] Texto elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Mesmo Platão também dizia que  a condição de filósofo  requer graça, pois  a ignorância , em suas diversas formas, é a pior das des-graças...




Nenhum comentário: