AS GRAÇAS [1]
“(...)uma
soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de
graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam
para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...”
(Deleuze &
Guattari, O que é a filosofia?)
"Somente os seres humanos livres são gratos uns aos outros."
(Espinosa)
Na mitologia, as Graças
eram três irmãs que nunca se separavam. Delas vêm “gratidão” e “gratuito”. As
outras divindades se tornavam ainda mais potentes e generosas quando buscavam a
companhia das Graças.
Quando Atena, a deusa da
sabedoria , andava na companhia das Graças, o conhecimento que vinha dela não
apenas instruía teoricamente ,
também deixava quem aprendia em graça, aumentando a potência da vida.
Eros também buscava a
companhia das Graças quando queria que o amor que ele dava fosse também um
estado de graça: afeto que se dá e recebe , sem cobranças.
E quando os deuses
queriam saber quem entre os seres humanos era grato, eles ofereciam seus dons
junto com as Graças, e assim sabiam quem, aos recebê-los, ficava agradecido .
Pois quem é agradecido é confiável.
Platão, por sua vez,
dizia que não se pode ser filósofo sem quatro aspectos conjugados : memória do
que não pode ser esquecido, desejo de aprender sempre mais, coragem para agir e
graça[2].
As Graças não são
exatamente a alegria ou a felicidade, pois elas vêm antes desses estados, e
muitas vezes são as Graças que nos amparam nos momentos de tristeza e
infelicidade.
As Graças são o contrário
das Moiras, que também eram três irmãs. Enquanto as Moiras querem nos impor um
Destino férreo que se paga com o preço da morte, as Graças ofertam mais vida de graça, mesmo quando nos julgavam
vencidos e mortos. E por esse sopro de vida a mais as Graças nada cobram,
apenas esperam que nos tornemos gratos. Pois daquilo que se
recebe de graça ninguém é o dono ou proprietário: o que se recebe das Graças é
para ser partilhado.
Certa vez, Orfeu acordou
de manhã e percebeu que Eurídice, seu par, já estava desperta. Ela estava
diante de uma penteadeira penteando-se, enquanto cantarolava baixinho uma canção.
Ela não cantava a canção inteira, apenas o ritornelo, o refrão.
De repente, Eurídice viu,
pelo espelho, a expressão de Orfeu a
olhá-la. Admirado, parecia que o poeta via uma obra de arte a qual não faltava
nada.
Eurídice perguntou: “O que foi!?” E o poeta pediu: “Não pare, faça de novo o que
você estava fazendo!...” “Mas o que eu estava fazendo?” “Você estava se
olhando, mas sem se julgar ou comparar; você estava cantando sem razão ou
motivo, mas como fazia sentido o seu cantar!” “Ah, então era isso!? Farei de
novo...”
Porém, por mais que
Eurídice tentasse fazer de forma calculada o que fizera de maneira espontânea, ela não
conseguia repetir o que vivera de forma gratuita e com graça, sem
distanciamento com a vida.
Na Grécia das tradições órficas, “Eurídice” é um dos nomes da Alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Quando o poeta canta a vida em graça, é porque sua Alma-Eurídice foi despertada à vida pelas próprias Graças. No poeta, é a alma que muitas vezes desperta, em graça, antes mesmo de ele abrir os olhos.
O contrário da vida não é
a morte. O contrário da vida é uma existência sem-graça que atrai e produz
des-graças. Uma existência assim é anti-poesia: com tudo e todos, ela é não confiável, in-grata.
( imagem: "As três
Graças" / Delaunay)
Nenhum comentário:
Postar um comentário